“Parasita” e o Judiciário

Artigo publicado no site Justificando no dia 10 de fevereiro de 2020.

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Não vou falar neste espaço sobre as recentes mentiras e os impropérios lançados pelo ministro Paulo Guedes que chamou os servidores públicos de parasitas.

O “Parasita” que menciono é o incrível filme coreano, ganhador de cerca de duas dezenas de prêmios, sendo o último o Óscar, de melhor filme, roteiro original, diretor e filme internacional, que a tantos impactou.

Há muitos gatilhos nesta obra que desencadeiam significantes e significados, que devem variar de pessoa para pessoa.

O que me fez retomar a memória, que sei que faz parte da vivência de toda pessoa que esteve em uma prisão ou em um ambiente que tenha presença de presos (como um fórum) foi o personagem invisível: o cheiro.

Fico me perguntando: qual seria o cheiro que o diretor Bong Joon Ho colocaria nas salas de cinema, se isto fosse factível, para que o público sentisse pelo olfato o que os personagens do filme experimentam?

Na primeira cena que esta questão vem à tona em “Parasita”, minha cabeça voou para o longínquo dia que fui pela primeira vez em uma penitenciária. Foi na década de 80, quando era estudante da Faculdade de Direito da PUC. Fui para um estágio voluntário, em razão de encaminhamento feito pelo professor José Gaspar Gonzaga Franceschini, que nos relatou em sala de aula os problemas da deficiência da assistência judiciária.

Portões abrindo e fechando atrás de mim e quanto mais adentrava ao presídio mais sentia o forte cheiro sufocante que nunca tinha vivido e que voltei a sentir em todas as oportunidades que estive em prisões.

Não sei bem descrever. Um cheiro que sufoca, incomoda, dá um pouco de náusea. Talvez venha da mistura de mofo, suor, cigarro, azedo da comida estragada, insalubridade, esgoto, falta de banho, banho rápido e gelado (a amiga Sonia Drigo, do Grupo “Mulheres Encarceradas”, me diz que em dia de visita o cheiro muda um pouco, pois mistura com a fragrância de shampoos).

É odor que fica impregnado nas pessoas para quem as promessas constitucionais nunca foram cumpridas. Cheiro de abandono.

Tive a sensação que este cheiro da prisão deve ser o mesmo cheiro sufocante do porão que uma das famílias do filme “Parasita” reside, onde não há sol, não há luz, não há direitos e que contrasta com a casa dos endinheirados, que é ampla, clara, iluminada, envidraçada, ainda que tenha um porão, cuja existência desconhecem .

O “cheiro” é o fio condutor que aparece em vários momentos chaves do filme e costura o mar de violência estrutural daquela sociedade. O patriarca endinheirado sente na pessoa de seu motorista; o patriarca pobre percebe, já que o patrão mostrou gestualmente o incômodo pelo odor; a mulher rica sente igualmente; a criança rica fala que os quatros pobres têm o mesmo cheiro; os empregados ouvem os patrões falando com repugnância do cheiro ruim; os pobres pensam em se livrar do cheiro; usam estratagemas para mudar os cheiros de cada qual, mas a filha tira as ilusões do pai: É o cheiro do porão e não há como escapar enquanto estiverem lá. E finalmente, num momento emblemático, é na cara nauseante, pelo cheiro exalado, que os últimos gatilhos disparam no filme.

Bem, mas o que o cheiro tem a ver com o Judiciário?

Simbolicamente, o cheiro tira a dignidade das pessoas.

É como se o cheiro fosse um não reconhecimento da qualidade do humano que existe no outro ser. Em relação ao sistema prisional, retira-se de circulação a pessoa que incomoda socialmente, que cheira, mas é certo que eles voltarão um dia .

Constata-se uma resistência por parte do Judiciário para que as pessoas retornem. Certamente muitos juízes gostariam que essas pessoas ficassem eternamente no porão, que os muros fossem eternos e que os cheiros não ocupassem os lugares que frequentam.

Talvez isto explique porque o Tribunal de Justiça de São Paulo negou, em 2019, 60% dos pedidos de prisão domiciliar para mulheres grávidas ou com filhos de até 12 anos, em que pese haver decisão do Supremo Tribunal Federal (STF).

Por que será que o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, o maior de todos, resiste em obedecer uma decisão do STF e a lei 13.769, de 19.12.2018 (que estabelece a substituição da prisão preventiva por prisão domiciliar da mulher gestante ou que for mãe ou responsável por crianças ou pessoas com deficiência e para disciplinar o regime de cumprimento de pena privativa de liberdade de condenadas na mesma situação)?

Por primeiro, creio que falta a compreensão do papel do magistrado no Estado Democrático de Direito. O juiz deve ser o instrumento da Constituição na defesa incondicional e na garantia efetiva dos direitos fundamentais da pessoa humana. Ele é responsável para que a Constituição Federal não se torne letra morta. Em suas mãos está a manutenção da higidez constitucional.

Um Judiciário só pode se dizer democrático se for capaz de dar as respostas necessárias para o projeto de democracia que o país agasalhou na Constituição Federal de 1988, que tem em sua essencialidade um sistema de direitos fundamentais individuais, coletivos, econômicos, sociais e culturais, acentuado nos princípios da igualdade e justiça social.

Sem esta compreensão o juiz substitui os valores constitucionais pelos pessoais e , nesta medida, acha que pode descumprir uma ordem judicial, o que jamais seria tolerada se fosse a sua. A regra: decisão judicial se cumpre, não serve para este tipo de juiz, que desrespeita a ordem democrática.

Fui juíza e desembargadora do TJSP por pouco mais de 30 anos e ouvi no ambiente forense, inúmeras vezes, que os juízes não tinham qualquer a responsabilidade pelo sistema prisional, que era afeta apenas ao Executivo.

Mas é certo que o Supremo Tribunal Federal (STF), alguns Tribunais e juízes , reconhecem em várias decisões que o Judiciário tem responsabilidade sobre o sistema carcerário.

Destaco apenas uma decisão da mais alta corte do país, que segundos os dados da Secretaria de Administração Penitenciária ( SAP), não está sendo cumprida, devidamente.

Pois bem.

Em 20 de fevereiro de 2018, no HC coletivo 143.641, o STF, levando em conta, dentre outros, a sua decisão na ADPF 347, que reconhece que o sistema carcerário caracteriza-se por verdadeiro estado de coisas inconstitucional; o panorama do encarceramento de mulheres e a repercussão na vida dos filhos, concedeu prisão domiciliar para presas provisórias, mediante requisitos: que estivessem grávidas ou tivessem filhos de até 12 anos ou com deficiência; que não tivessem praticado crime com violência ou grave ameaça; ou contra os próprios filhos ou que não fosse adequada a medida, em situações “excepcionalíssimas”.

Lamentavelmente, ouvir desembargadores afirmarem que fariam de tudo para não cumprir esta decisão do STF.

Como se pode constatar, a excepcionalidade foi e é forma usada pelos magistrados para não dar cumprimento à ordem exarada pelo STF.

Em audiência pública realizada na Câmara dos Deputados, em 15.8.2019, convocada pela Comissão de Defesa dos Direitos da Mulher, a Dra. Fabiane Pereira de Oliveira, assessora no STF, em análise pessoal, apontou os equívocos mais corriqueiros na aplicação do HC coletivo: sentença condenatória, não transitada em julgado; tráfico de entorpecente; tráfico em estabelecimento prisional ou na própria residência; não comprovação de vínculo empregatício ( como se emprego formal fosse uma possibilidade para todos); juntada de certidão de nascimento; não comprovação da indispensabilidade da mãe para os cuidados da criança; prova de aptidão para exercer a maternidade; invocação da reincidência.

Passados oito meses, uma nova decisão do STF esclareceu que a decisão deve ser aplicada igualmente para presas por tráfico de drogas e mães condenadas sem condenação definitiva.

Os dados oriundos da Secretaria Estadual da Administração Penitenciária (SAP) indicam que entre a data da decisão do STF e o dia 30 de janeiro de 2020, 3.957 pedidos foram julgados e 60,4% (2.390 casos) foram negados pelo Judiciário Paulista.

Neste mundo existem muitos espaços, o da casa grande e senzala; a mansão e a periferia; a casa rica e o seu porão, que o próprio morador desconhece.

O porão, a prisão e o cheiro dividem os dois mundos.

A aversão ao cheiro, transposta em uma sentença, é a exteriorização dos preconceitos e a ausência de alteridade no julgamento e o não saber da democracia.

Mas qual o cheiro do Judiciário?

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Kenarik Boujikian, desembargadora TJSP ( 1989/2019); cofundadora da Associação Juizes para a Democracia e da ABJD