Independência do juiz e ânsia punitiva do Ministério Público*

O retrocesso político e civilizatório brasileiro parece não pretender deixar pedra sobre pedra nas instituições da República. A última dessas etapas ameaça ruir e levar consigo a confiança derradeira na democracia e nas liberdades.

Trata-se da independência judicial, garantidora da liberdade que têm os juízes de interpretar a ordem jurídica segundo a sua convicção, motivadamente, ao amparo da lei e da Constituição.

Em que pese essa garantia, dois casos gravíssimos de decisões judiciais no Estado de São Paulo foram recentemente deslocados, de forma inaceitável, do debate processual para as instâncias disciplinares.

No primeiro deles, o juiz de direito Roberto Luiz Corcioli Filho foi punido, com a pena de censura, pelo TJ-SP, por alegada “atuação com viés ideológico”, por “soltar muito” os presos sob sua jurisdição; por ser “progressista” demais.

Um outro ponto da “acusação” é a interpretação do artigo 240 do CPP e a ilegalidade de busca pessoal feita pelas guardas metropolitanas.

Essa ânsia punitiva do Ministério Público diz respeito, evidentemente, à interpretação da lei, sendo escandalosamente incabível ser transportada qualquer discussão nessa seara para a vertente disciplinar com o evidente objetivo de intimidar não só o juiz punido, mas todos os outros que verão em seu exemplo o que pode lhes acontecer de prejudicial, caso sigam o mesmo caminho.

Mas o avanço contra a independência judicial não fica apenas no caso do juiz Roberto Corcioli. Neste dia 25.nov.2020, às 14h, tem-se notícia de que o Órgão Especial do TRF-3 também julgará processo disciplinar aberto contra o juiz Edevaldo de Medeiros, igualmente instaurado a pedido de nove Procuradores da República.

As “acusações” não são substancialmente distintas. Ambas dizem respeito a decisões judiciais proferidas pelo magistrado ao longo de uma década, tidas como “desfavoráveis” ao MPF.

As alegações dos procuradores, nesse caso, são no sentido de que o juiz teria um tal de perfil “ético-psicológico arbitrário” que o lavaria, por “razões ideológicas”, a rejeitar denúncias do órgão ministerial, de modo que a via disciplinar seria mais eficiente do que a recursal para inibir essas decisões. Reclamam até que o juiz concede liberdades provisórias não compatíveis com o entendimento que acham o correto.

Semelhante ao caso do juiz Corcioli, no caso do juiz Edevaldo Medeiros, o que pretende também o MPF, por divergências interpretativas, é eliminar progressivamente da magistratura inimigos imaginários, os que cogitam ser os inimigos da sanha punitivista que tomou conta de uma banda da magistratura e do MP.

Curioso é que, no caso do juiz Edvaldo Medeiros, nenhum dos oito procuradores trabalha ou trabalhou com o magistrado.

O único procurador que atua junto à vara do magistrado foi arrolado como testemunha, mas em juízo admitiu que “corrigiu” a peça acusatória, parecendo tudo isso ser uma espécie de artimanha para viabilizar a prova.

São casos até então sem precedentes, que emulam no Brasil o Macarthismo reinante nos EUA nos anos cinquenta, caracterizado por uma forte repressão política a adversários, com formação das chamadas “listas negras”, demissões dos indesejáveis, naquilo que se chamou de “caça às bruxas”.

Tenta-se agora, no Poder Judiciário brasileiro, em estágio inicial, por demanda do Ministério Público, copiar esses métodos nefastos e de triste memória.

Não se pode, todavia, colocar uma camisa de força disciplinar naqueles que não pensam em harmonia com o pensamento único do Ministério Público.

A independência judicial aparente e concreta não comporta tutela às decisões dos juízes por órgãos disciplinares, sob pena de naufragar a ideia e a existência de um Judiciário livre no Brasil.

Segundo constou do “Bangalore Principles Of Judicial Conduct”, documento editado sob os auspícios das Nações Unidas, é “(..) importante que o Judiciário seja visto como independente e que a análise da independência inclua essa percepção”. (fls.58).

É urgente e necessário, portanto, que os tribunais assegurem as garantias da magistratura e que o Conselho Nacional de Justiça reveja eventuais decisões equivocadas das cortes locais, restaurando a independência judicial e do próprio funcionamento do Poder Judiciário.

Sem essa garantia o Poder Judiciário não tem serventia democrática; será apenas expressão do arbítrio sob o enganoso verniz do Estado Democrático de Direito.


 * Germano Siqueira, juiz do Trabalho de Fortaleza.

 Artigo publicado originalmente no site Folha de São Paulo no dia 25 de novembro de 2020.