Editorial AJD

Associação Juízes para a Democracia repudia a proposta apresentada pelo Secretário de Assuntos Penitenciários de São Paulo, Nagashi Furukawa, na reunião do Conselho Nacional de Secretários de Estado da Justiça, Cidadania, Direitos Humanos e Administração Penitenciária (Consej), realizada no dia 10 de novembro de 2005, na qual estavam presentes dezessete membros, e que teve votos contrários dos secretários do Acre, Amazonas, Bahia, Distrito Federal e Rio Grande do Sul.

A proposta retira o caráter jurisdicional da execução penal, prevendo alterações legislativas na Lei de Execução Penal, que passaria a dispor que: a) caberá às autoridades administrativas das unidades federativas decidir e promover, de comum acordo, a remoções de preso condenado ou provisório e b) se o juiz da execução exceder o prazo de trinta dias sem proferir sentença, os pedidos de progressão e regressão de regime, livramento condicional, remoção para estabelecimento em local distante da condenação e indulto serão decididos pela autoridade administrativa.

A proposta atinge direitos e garantias fundamentais que não pertencem a uma parcela das pessoas, mas a todas, individual e universalmente consideradas.

Um dos fundamentos da nossa República, que se constitui em Estado Democrático de Direito, é a dignidade da pessoa humana, atributo que o condenado(a) não perde e que é suporte de
todos os direitos humanos consagrados, notadamente na Constituição Federal. Daí decorre o princípio da humanidade
da pena, estabelecido pelo artigo 5º da Constituição Federal, incisos III, XLVII, XLVIII, XLIX e L.
O processo penal e de execução penal é integralmente jurisdicionalizado, extraído dos princípios constitucionais
da legalidade (artigo 5º, XXXIX, CF), individualização da pena (artigo 5º, XLVI, CF) e acesso à jurisdição (artigo 5º, XXXV, da CF).

O princípio da reserva legal diz respeito não apenas à atividade de aplicação da lei na exata medida do fato praticado, definido como crime, mas à “legalidade da inteira repressão”, conforme
adverte Alberto Silva Franco ao afirmar que implica o “reconhecimento de que o preso não pode ser manipulado
pela administração prisional como se fosse um objeto; de que, não obstante a perda de sua liberdade, é ainda sujeito de direitos, mantendo, por isso, com a administração penitenciária, relações
jurídicas das quais emergem direitos e deveres, e que a jurisdição deve fazer-se não apenas nos incidentes próprios da fase executória da pena, como também, nos conflitos que possam eventualmente resultar da relação tensional preso-administração”.

Em decorrência do princípio da individualização, considerando o sistema progressivo consagrado pelo sistema de 1984, a execução da pena pressupõe atuação jurisdicional dinâmica com a necessária participação do Ministério Público e da Defesa. A necessidade e suficiência da sanção constituem premissas que devem permear todo o processo de execução.

O princípio do acesso à jurisdição não permite que seja afastado do julgamento do Judiciário, por qualquer meio, inclusive por meio de lei, a apreciação de qualquer lesão ou ameaça de direito.

Esta apreciação deverá ser realizada segundo as premissas constitucionais do devido processo legal, do contraditório e da ampla defesa.

A histórica conquista da jurisdicionalização do processo de execução da pena é produto do entendimento de que o processo é instrumento de realização de justiça. Há uma demanda por efetividade da ordem constitucional e proteção concreta aos direitos fundamentais, para que deixem de ser meros ornamentos de uma ordem apenas formalmente democrática e adquiram uma dimensão efetiva.

Há uma malha de ilegalidades imperando na execução penal. Há total ausência de políticas públicas, que constituem obrigação do Poder Executivo. No cotidiano a Administração viola fundamentos constitucionais, notadamente a dignidade humana. As demais instituições envolvidas — Conselhos, Ministério Publico e Poder Judiciário —atuam formal e burocraticamente em processos, o que é evidente pelos pouquíssimos processos de interdição de estabelecimentos, existindo inúmeros funcionando em condições inadequadas e com infringência a dispositivos da lei de execução penal.

Porém, a malha da ilegalidade real somente reforça a necessidade, cada vez maior, da intensificação da jurisdicionalização.

Não será esta a primeira vez que se tenta retirar direitos consagrados na Constituição suprimindo, justamente, direito de excluídos.

A consciência democrática do país repudia a proposta de desjurisdicionalização. Não haveremos de viver tão absurdo
retrocesso histórico. Da efetividade dos direitos depende
a conquista da democracia real. A legalidade no encarceramento e a garantia da jurisdicionalização no dia-a-dia da
execução penal são indissociáveis da democracia.