DECISÃO - Ação popular contra distribuição de medicamento sem eficácia de COVID 19 - RS

Poder Judiciário

Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul

10ª Vara da Fazenda Pública do Foro Central da Comarca de Porto Alegre

Rua Manoelito de Ornelas, 50 - Bairro: Praia de Belas - CEP: 90110230 - Fone: (51) 3210-6500

AÇÃO POPULAR Nº 5002729-17.2021.8.21.0001/RS

AUTOR: PEDRO LUIZ FAGUNDES RUAS

AUTOR: MATHEUS PEREIRA GOMES

AUTOR: LUCIANA KREBS GENRO

AUTOR: KAREN MORAIS DOS SANTOS

AUTOR: FERNANDA MELCHIONNA E SILVA

AUTOR: ALEXSANDER FRAGA DA SILVA 

AUTOR: CARLOS ROBERTO DE SOUZA ROBAINA

RÉU: MUNICÍPIO DE PORTO ALEGRE

DESPACHO/DECISÃO

Vistos.

Pedro Luís Fagundes Ruas, Alexsander Fraga da Silva, Luciana Genro, Matheus Pereira Gomes, Fernanda Melchiona e Silva, Carlos Roberto de Souza Robaina e Karen Santos ingressaram com Ação Popular (AP), com pedido de liminar/tutela de urgência, contra o Município de Porto Alegre (MPOA) e Sebastião Melo, Prefeito Municipal, postulando que os réus parem de distribuir, utilizar e/ou adquirir medicamentos de eficácia não comprovada - especialmente ivermectina e hidroxicloroquina - para tratamento precoce contra a COVID-19, na rede pública de saúde do Município. E, ainda, para que o Prefeito bem como o Secretário de Saúde, se abstenham de divulgar, por meio de propaganda institucional ou por pronunciamentos na imprensa, sobre a utilização de ivermectina e hidroxicloroquina como medicamentos eficazes no tratamento da Covid-19.

Sustentam que a adoção do tratamento precoce contra a doença, sem base científica, fere a moralidade administrativa, autorizando ao manejo da AP. Ao final, requerem a procedência da ação, com confirmação da tutela de urgência postulada.

Acompanhou a petição nota do Conselho Nacional de Saúde sobre o assunto.

Determinada a regularização da representação processual de alguns dos autores populares e solicitada manifestação preliminar ao Procurador-Geral do Município.

Informações prévias no Evento 17, acompanhada de documentos.

Em primeiro, aduz que há equívoco narrativo na inicial, visto que os réus não orientaram ou indicaram qualquer tratamento precoce para a Covid-19, pois falta qualificação técnica médica ao Chefe do Executivo. Há é a aceitação de remessa gratuita dos fármacos hidroxicloroquina e cloroquina por parte do Governo Federal, por intermédio do Ministério da Saúde (MS). Sendo o trato da pandemia uma novidade na gestão da saúde, existe ato de gestão de medicamentos por parte da Coordenação de Assistência Farmacêutica – CAF/SMS, responsável pela organização de insumos farmacológicos locais. Assim, foi expedida a Nota Técnica (NT) 01/2021, contendo os requisitos cumulativos para a dispensação dos medicamentos que menciona.

Em seguimento, suscita preliminares. Impropriedade da via eleita, pois inexiste ato lesivo ao patrimônio público ou à moralidade administrativa. Até porque da leitura da exordial não se extrai impugnação a nenhum ato específico, considerando que os pedidos são imprecisos. Tece considerações sobre a natureza dos atos administrativos, sustentado que existe mero ato enunciativo, sem qualquer carga de imperatividade a caracterizar ato atacável pela via da AP, eis que ausente qualquer propaganda institucional, não se faz presente a coercibilidade necessária para manejar a ação popular.

Adiante, entende que há carência de interesse processual, na ausência de qualquer ato nulo ou anulável que resulte lesão ao patrimônio público ou à moralidade administrativa. A NT 01/2021 só promove orientação aos farmacêuticos da Atenção Primária à Saúde para a dispensação de Ivermectina, Azitromicina, Hidroxicloroquina e Cloroquina, para tratamento da Covid-19, desde que ocorra previsão/autorização médica e assinatura de termo de ciência. Afirma que a NT 01/2021 nada mais é que ratificação da autonomia da equipe médica em adotar o tratamento que entenda adequado e eficaz para cada caso específico, em decisão compartilhada com paciente ou seus familiares. Segundo o réu, inexiste imoralidade na preservação de vidas. A aceitação dos medicamentos, pode-se chamar de uma “Escolha de Sofia Administrativa”, “ou seja, mesmo contrário a suas posições, teve que escolher: nega o recebimento de fármacos ou os aceita!” Ademais, a hidroxicloroquina e a cloroquina não integram a REMUME 2020 de Porto Alegre, não havendo qualquer dispêndio de dinheiro do MPOA, pois são fornecidos gratuitamente pelo MS.

No mérito, entende ausentes os requisitos para a concessão da tutela antecipada, pois só atuou na gestão de insumos para atender a autonomia médica, garantindo a disponibilidade de medicamentos que são de escolha de alguns médicos para minorar os efeitos da Covid-19. Ainda, entende que a concessão de liminar vai gerar periculum in mora reverso, já que pode gerar efeito na aquisição dos mesmos fármacos para outras patologias, citando, exemplificativamente, os casos da Ivermectina e da Azitromicina. Há que ser respeitada o poder de autoexecutoriedade na gestão da saúde da compra de medicamentos.

Por fim, sustenta que o Município não atestou qualquer programa para tratamento da Covid-19, apenas atuou na gestão de insumos (compra de medicamentos) para que estejam disponíveis medicamentos, caso a utilização seja estabelecida dentro da relação médico e paciente.

Culminou requerendo o acolhimento das preliminares e, alternativamente, a não concessão de tutela de urgência.

Os autores populares regularizaram parcialmente a representação processual (para a requerente Fernanda foi juntado instrumento de mandato apócrifo - Evento 17 PROC2). Reiteraram o pedido de concessão da liminar e acostaram notícias, manifestações de entidade médicas posicionando-se contra o tratamento precoce da COVI-19 e diligência do MPF para investigar a situação do tratamento precoce da Covid-19.

Breve relato.

Decido sobre o pedido de tutela de urgência.

DAS PRELIMNARES 

processual)

Popular.

Impropriedade da via eleita (AP) e ausência de ato anulável (carência de interesse O exame da pretensão dos autores populares tem trânsito em sede de Ação

A oferta de tratamento precoce contra a Covid-19, representada pelo ato administrativo estampado na NT 01/2021 (Evento 17 OUT2), refere expressamente à possibilidade de tratamento precoce contra Covid-29, por meio do fornecimento de medicamentos na rede básica de saúde, nas unidades que possuírem farmacêuticos trabalhando:

NOTA TÉCNICA SMS Nº 01/2021

A SECRETARIA MUNICIPAL DE SAÚDE orienta os(as) farmacêuticos (as) da Atenção primária quanto a dispensação dos medicamentos Ivermectina, Azitromicina, Hidroxicloroquina e Cloroquina, disponíveis, nos serviços de saúde com presença de farmacêutico na rede de atenção primária do Município:

 

  1. A dispensação desses medicamentos para tratamento precoce da COVID 19 fica RESTRITA a apresentação de prescrição médica e assinatura do Termo do ANEXO
  1. Disponibilidade: Estes medicamentos estão disponíveis nos serviços de saúde que contam com a presença de farmacêutico na rede de atenção primária do Município. (os destaques são meus)

Os autores populares, de modo claro, expressam o interesse de que medicamentos sem eficácia comprovada no tratamento precoce da Covid-19 não sejam disponibilizados para tal fim pelo MPOA.

Logo, sendo a NT SMS 01/2021, a materialização da oferta e da possibilidade de utilização de hidroxicloroquina, cloroquina, ivermectina a azitromicina para tratamento preventivo ou prévio da doença na assistência básica do Município, inequívoco que é este o ato atacado pelos requerentes.

E o exame de sua legalidade ou validade, dentro do ordenamento constitucional, que reconhece a saúde como um direto fundamental social (CF, art. 6º1) e dever do Estado em provê-la, conforme expressamente indica o art. 196, da Carta Magna2, permite discutir, no âmbito da moralidade administrativa, se é lícito ao MPOA autorizar/promover a dispensação de medicamentos sem eficácia comprovada para a Covid-19. Considerando os efeitos que tal inciativa pode causar à saúde dos munícipes, quer seja por transmitir uma falsa sensação de segurança de prevenção contra a doença, quer seja por induzir a um afrouxamento no cuidado com as medidas preventivas cientificamente comprovadas e que são eficazes para minorar a contaminação (distanciamento social, evitar situações em que há aglomeração, medidas de higienização de mãos, uso de máscara e outras).

A preservação da saúde pública – dever do Município -, que é de interesse público e representa a garantia de um direito fundamental de natureza coletiva e de caráter transindividual, autoriza a busca de sua proteção pela via da Ação Popular fundada na moralidade administrativa. A previsão, como sabido, tem assento constitucional – art. 5º, inc. LXXIII, da CF3.

Se há o dever de agir do Município para preservar e garantir a saúde coletiva (direito fundamental), ao permitir a distribuição de medicamentos sem eficácia comprovada para prevenir a doença, em tese, atua em desconformidade com o interesse público.

O princípio da moralidade juridiciza valores sociais erigidos a padrão de comportamento para os agentes públicos, que devem atuar seguindo parâmetros éticos na produção do ato administrativo. E quando se trata de saúde pública, notadamente no combate à pandemia, há obrigação de agir conforme o conhecimento científico estabelecido com base em evidências.

A Lei Geral da Pandemia – nº 13.979, de 06.02.2020 – diante da novidade sanitária de caráter global e que ainda não tem um consenso científico para o seu tratamento (salvo para medidas de prevenção ao contágio – distanciamento social, uso de máscaras etc.), traz diretrizes para a atuação do agente público no seu combate. Dentre as quais está a instituição ou a disponibilização de tratamentos médicos específicos (art. 3º, inc. I, “e” 4).

E no § 1º5, do art. 3º, traz critérios que se aplicam a toda e qualquer medida que possa ser adotada. Isto é, precisam estar arrimadas em evidências científicas e em análise sobre as informações estratégicas em saúde.

Assim, a emissão da NT 01/2021 (caso concreto), para o fim do exame da tutela de urgência, com base em ferimento da moralidade administrativa, passa pela compreensão do conteúdo jurídico mínimo do Princípio da Moralidade Administrativa. E não se trata de tarefa simples, como reconhece a doutrina.

O estabelecimento de um standard de seu conteúdo, certamente não contemplará todas as situações da realidade fática. Precisando que eventual infringência seja analisada a partir do caso concreto.

MAFFINI6, de forma bem objetiva, esclarece o ponto:

Buscando-se, pois, uma formulação teórica que seja mais adequada para traduzir a noção de moralidade administrativa, ainda que persista o problema de sua aplicação concreta, tem-se que a moralidade administrativa busca a obtenção de um estado de honestidade na Administração Pública, para o que se impõe, em todas as suas relações jurídicas, deveres de boa-fé, probidade, lealdade, transparência etc. É importante ser afirmado que a moralidade administrativa é figura que se apresenta funcionalizada e não se confunde, necessariamente, com a moral comum, embora dela se utilize para a construção das noções de honestidade funcional que são inerentes ao princípio jurídico em comento.

De tal noção se depreendem algumas consequências que devem aqui ser observadas. A primeira delas é a de que a moralidade administrativa é princípio dotado de conteúdo jurídico autônomo. Tal consideração mostra-se importante porque no passado já se sustentou que a moralidade deveria ser necessariamente secundada na legalidade, ou seja, já se defendeu que somente se exigiria a moralidade que a lei explicitamente previsse. Essa forma de pensar a moralidade administrativa já não mais se sustenta, uma vez que a moralidade administrativa possui, como asseverado, conteúdo autônomo que até pode estar cristalizado em preceitos legais, mas não é imprescindível que o esteja para fins de juridicização de seu conteúdo.

OHLWEILER7, ao discorrer sobre a moralidade administrativa, reforça que seu conceito é interpretativo e sua aplicação precisa ser justificada e legitimar-se no “horizonte de sentidos das virtudes constitucionais (aquilo que é certo)”:

De plano, salienta-se que a moralidade administrativa não é algo institucionalizado no vácuo, mas indicação jurídica com carga de sentido, de algo que se deve fazer na gestão da coisa pública, cabendo ao intérprete/aplicador dotar-se de capacidade para viabilizar este fio condutor.

...

Mas aqui reside aspecto por vezes olvidado pela jurisprudência: moralidade administrativa é conceito interpretativo, ou seja, como refere Dworkin, sobre o qual as pessoas controvertem e está integrado com outros conceitos que o justificam. Caracteriza-se, no entendimento de Ernildo Stein, conceito que não remete para objetos reais: “eles são sem objeto e as construções com que eles trabalham não visam reconstruções de objetos reais, mas de alguma maneira são articulações de representações que se resumem numa espécie de metaconceito.”

Assim, sindicar se a NT 01/2021, fere, ou não, a moralidade administrativa, por disponibilizar um tratamento precoce para a Covid-19, é possível. Há obrigação do Município em preservar a saúde pública, direito coletivo de toda a sociedade. Logo, a partir do exame de princípios e norteadores hauridos do ordenamento jurídico é que se verificará a sua validade.

Em suma, o ato de disponibilizar o tratamento precoce na rede pública de Atenção Básica à Saúde, mesmo exigindo a indicação médica, não se trata de mero ato enunciativo de facultar tal tratamento. Há um agir positivo (comissivo) do administrador – ter os medicamentos disponíveis para tratamento precoce da doença – que precisa estar baseado em evidências científicas que autorizem a sua escolha.

Em razão do exposto, rejeito as preliminares suscitadas. DA TUTELA DE URGÊNCIA.

De plano, afasto a alegação de risco de periculum in mora reverso de suspensão de compra de medicamentos para outras patologias.

O pedido dos autores populares é certo: suspensão do fornecimento de medicamentos para tratamento precoce da Covid-19. Logo, os fármacos, em especial os que constam na Relação Municipal de Medicamentos Essenciais (REMUME) de Porto Alegre – azitromicina e ivermectina –, deferida a tutela de urgência, sempre poderão ser adquiridos e fornecidos para o tratamento das demais patologias que se enquadram na política pública municipal de assistência farmacêutica.

O MPOA sustenta que, na essência, a oferta do tratamento precoce vincula-se estreitamente com o direito à vida, sendo sua obrigação a promoção da saúde e bem-estar da população. E diante da realidade complexa do trato da Covid-19, a disponibilização dos medicamentos contestados, nada mais é do que privilegiar a autonomia médica. Não implicando em nenhuma ponderação sobre a eficácia dos medicamentos ou de potencial nocivo, tal análise fica no âmbito da relação médico x paciente.

O Poder Público, na gestão da saúde coletiva, tem o dever de ponderar, a luz dos princípios que devem nortear a sua atuação, sobre a eficiência do tratamento que disponibiliza como política pública de assistência à saúde e/ou farmacêutica, bem como sobre os seus reflexos, ainda que indiretos, no combate à pandemia. Não existe espaço para uma neutralidade anômica.

E qualquer tratamento que venha a ser incorporado à política pública – mesmo que em caráter temporário, pelo tempo que perdurar a pandemia -, tem que estar arrimado em evidências científicas e em análise sobre as informações estratégicas em saúde (§ 1º, do art. 3º, da Lei nº 13.979/2020).

A NT 01/2021 não traz nenhuma justificativa que atenda aos requisitos acima referidos. Como se viu da transcrição já feita, sem indicar o suporte técnico-científico de suas escolhas, cinge-se a enumerar os elementos que precisam estar presentes para a dispensação dos

fármacos. Logo, sequer se pode falar em “escolha de sofia administrativa”8, diante da ausência de indicação de evidências sólidas e aceitas pela comunidade científica, como adiante ficará demonstrado.

A obrigação do Poder Público, especialmente em saúde, sempre deve ser fundada na preservação do interesse coletivo, que não se coaduna com qualquer possibilidade que pode gerar risco e se afaste da aplicação do princípio da precaução.

A falta de embasamento em evidências, para incorporação de tratamento em política pública, não pode ser escudada na autonomia médica, princípio fundamental do Código de Ética Médica CEM)9 e indicado em seu preâmbulo:

PRINCÍPIOS FUNDAMENTAIS (...)

  • - O médico exercerá sua profissão com autonomia, não sendo obrigado a prestar serviços que contrariem os ditames de sua consciência ou a quem não deseje, excetuadas as situações de ausência de outro médico, em caso de urgência ou emergência, ou quando sua recusa possa trazer danos à saúde do paciente. 
  • - O médico não pode, em nenhuma circunstância ou sob nenhum pretexto, renunciar à sua liberdade profissional, nem permitir quaisquer restrições ou imposições que possam prejudicar a eficiência e a correção de seu trabalho.

O princípio da autonomia não pode ser visto isoladamente, afastado da sua conjugação com a vedação expressa de: “Divulgar, fora do meio científico, processo de tratamento ou descoberta cujo valor ainda não esteja expressamente reconhecido cientificamente por órgão competente10.”

Logo, o princípio da autonomia médica não é absoluto, sofrendo mitigação pelo próprio CEM, que veda a divulgação ou difusão de tratamento quando não amparado em evidências, visto que será a existência destas que levará a proposta terapêutica ao reconhecimento.

Por oportuno, cumpre consignar que disponibilizar tratamento precoce para a COVID-19, ainda, tem a possibilidade de expor o médico a uma pressão indevida e desnecessária.

É certo que nenhum médico pode ser coagido ou forçado a receitar medicamento que entenda não ser benéfico ao paciente. E negando-se a fazer uma prescrição que não entende cabível, jamais poderá ser responsabilizado. A autonomia médica, de agir em conformidade com seu saber e convicções científicas, é princípio basilar da profissão assentado há séculos11. Todavia, estando os fármacos disponibilizados pelo Município, pode um paciente, compreensivelmente, no afã de procurar proteção preventiva, em vista da grande divulgação, sem qualquer base científica séria, da existência de tratamento precoce contra a Covid-19, insistir para receber os fármacos. Constrangimento, no meu sentir, absolutamente desnecessário, que em nada contribui para o estabelecimento de uma melhor relação entre médico e paciente.

Superada a questão da autonomia médica como fundamento da adoção do tratamento precoce, há que se considerar que outros elementos, obrigatoriamente, deverão ser considerados para a incorporação de terapia medicamentosa à assistência básica do SUS.

O uso off label12 de medicamentos (quando uma medicação já liberada para uso assistencial por agência reguladora é prescrita para outra finalidade diferente da registrada), como é sabido, não é vedado na prática médica. O médico, visando o melhor interesse de seu paciente, tem a liberdade de indicar o uso off label de medicamentos13.

Todavia, não podem ser incorporados medicamentos à política pública de assistência farmacêutica do SUS, em qualquer esfera de sua administração, sem que haja recomendação/aprovação da Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias (CONITEC), conforme estabelecido na Lei nº 8.080/1990, Cap. VIII (Da Assistência Terapêutica e da Incorporação de Tecnologia em Saúde, incluído pela Lei nº 12.401/2011)14.

E mesmo que se pudesse afastar, o que se admite para argumentar, a dispensa do processo de avaliação da CONITEC para incorporação de medicamentos para o trato de patologia nova, considerando a situação excepcional da pandemia, a NT 01/2021 não apresenta nenhuma evidência científica ou análise de dados de informações estratégicas em saúde, exigências inafastáveis para a instituição de tratamento precoce contra a Covid-19 (§ 1º, do art. 3ª, da Lei nº 13.979/2020).

A pandemia tem desafiado pesquisadores do mundo inteiro na busca não só por uma vacina, mas também por medicamentos capazes de prevenir, minimizar ou até curar uma infecção pelo coronavírus Sars-Cov-2.

Até o presente momento, o tratamento precoce para a Covid-19 não tem suporte em evidências científicas robustas e assentadas em pesquisas clínicas conclusivas sobre a sua eficácia.

O TelessaúdeRS da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), que é o Núcleo de Apoio Técnico ao Judiciário (Nat-Jus) em saúde do TRF/4, em recente atualização (21.01.2021) sobre evidências científicas sobre o uso de hidroxicloroquina/cloroquina como terapia específica para Covid-1915, conclui não ser recomendável a utilização para tratamento e casos suspeitos da Covid-19, diante da ausência de evidências de trazer benefícios e da possibilidade de trazer malefício para os pacientes:

Conclusão

Os médicos devem aprimorar continuamente suas práticas de acordo com o progresso científico, procurando os melhores resultados para os pacientes. Além disso, nenhuma disposição estatutária ou regimental de hospital ou de instituição, pública ou privada, limitará a escolha, pelo médico, dos meios cientificamente reconhecidos a serem praticados para estabelecer o tratamento, salvo quando em benefício do paciente.

Assim, norteando-se pelos princípios do Código de Ética Médica e de acordo com as mais robustas evidências científicas disponíveis até o momento, o uso de hidroxicloroquina ou cloroquina, associada ou não à azitromicina, para tratamento de casos suspeitos ou confirmados de COVID-19 não traz benefício aos pacientes e parece estar associado a potencial malefício.

Essa posição está em concordância com diversas organizações de saúde científicas, nacionais e internacionais, tais como SBI, SBPT e AMIB, OMS, OPAS, CDC, NIH, NHS. Em anexo, há uma tabela que resume as orientações de sociedades médicas nacionais e internacionais e principais entidades de saúde do mundo a respeito de algumas possíveis terapêuticas específicas contra a COVID-19.

Por esclarecedora e trazer de forma esquemática todas as posições de entidades e instituições, nacionais e internacionais, de saúde sobre o uso dos medicamentos incluídos na NT 01/2021/SMS, agrego à presente o Quadro 1, constante da avaliação atualizada do TelessaúdeRS (para localização, vide Nota 15) (destaquei os fármacos que constam na recomendação da SMS/POA):

Quadro 1. Recomendações de instituições nacionais/internacionais de saúde e de sociedades médicas sobre possíveis terapias específicas contra COVID-19.

Recomendações de instituições nacionais/ internacionais de saúde e de sociedades médicas

Terapêuticas experimentais para COVID-19

OMS

OPAS

CDC / NIH a

NHS

IDSA

AMIB        / SBI / SBPT

  

Hidroxicloroquina (ou Cloroquina)

Contra uso (forte)

Contra o uso

Contra uso (AI)

Contra

uso a

Contra uso (forte)

Contra uso

Hidroxicloroquina (ou Cloroquina) + Azitromicina

Contra uso (forte)

Contra o uso

Contra uso (AI)

Contra uso a

Contra uso (forte)

Contra uso

Lopinavir/ritonavir

Contra uso (forte)

Contra o uso

Contra uso (AI)

Contra

uso a

Contra uso (forte)

Contra uso de rotina

Oseltamivir

Contra      o uso

Contra o uso

Contra       o uso

Tociclizumabe

Contra      o uso a

O

O

A favor do usoe

Contra                     usoa(recomendação condicional)

Contra       o

uso           de

rotina

Ivermectina

Contra o uso

Contra o uso

Contra o uso (AIII)

Contra      o uso

Remdesivir

Contra  uso (fraca)

Contra o uso a

A       favor       do uso d (BIIa/BIII)

A favor do uso d

A favor do uso d

(Recomendação

condicional)

Contra       o uso

Glicocorticosteroides

02729-17.2021.8.21

A favor do uso e

.0001

A favor do uso e

A favor do uso e

A favor do uso e

A favor do uso e

(forte)

100059

A favor do uso e

18311 .V14

 

OMS = Organização Mundial da Saúde; CDC = Centers for Disease  Control  and Prevention (EUA – Estados Unidos da América); NIH = National Institute of Health(EUA); NHS = National Health Service(Reino Unido); IDSA = Infectious Disease Society of America(EUA); AMIB = Associação de Medicina Intensiva Brasileira; SBI = Sociedade Brasileira de Infectologia; SBPT = Sociedade Brasileira de Pneumologia e Tisiologia.

Como se vê, há um consenso técnico-científico muito forte contra a instituição de tratamento precoce contra a Covid-19. Os estudos que indicavam alguma utilidade, foram desqualificados com o avanço das pesquisas e verificações realizadas por pares, por força das inconsistências que foram detectadas.

A opção da instituição do tratamento precoce, diante da ausência de evidências científicas sérias de sua efetividade, foi uma opção política do Administrador, que extrapolou seu poder de discricionariedade. Ferindo a boa-fé objetiva que deve presidir a prática dos atos da administração.

E diante da ausência de evidências sobre a efetividade da utilização de tratamento precoce – já popularizado na expressão “kit covid” –, em momento de cognição sumária, imprescindível examinar a pretensão dos autores populares, também, no viés da incidência do princípio da precaução na espécie. Especialmente quando a gestão do risco em saúde é fundamental para a escolha da implementação de uma política em saúde.

Tal princípio tem sua origem no enfrentamento da matéria ambiental e está vinculado ao dever de cautela ou de prudência diante da imprecisão científica a respeito do dano que eventual conduta ou atividade pode causar ao meio ambiente ou a saúde humana16.

Vale dizer, pela sua aplicação impede-se a ocorrência dos danos derivados de uma determinada causa ou agir; ao invés de aguardar o acontecimento deles, para depois adotar medidas preventivas ou mitigatórias. Existindo dúvida razoável e consistente, acautela-se a possibilidade de seu acontecimento17.

E disponibilizar tratamento precoce para Covid-19, nos moldes da NT 01/2021 da SMS/POA, além do risco de danos à saúde individual, pelos efeitos colaterais que podem causar, traz um reflexo deletério à saúde coletiva.

A crença de estar protegido contra a doença com a realização do tratamento precoce, induz a um natural abrandamento nos cuidados de prevenção contra a propagação do coronavírus. E estes, até o presente momento, são os únicos comprovadamente eficazes para conter a disseminação pandêmica do vírus.

Em resumo, ao instituir a distribuição de medicamentos para o tratamento precoce da Covid-19, o Município de Porto Alegre, não atendeu ao seu dever de zelar pela preservação da saúde coletiva, faltando com sua obrigação ética de agir conforme o interesse público sanitário, possibilitando que haja um relaxamento com os cuidados preventivos para a contenção da pandemia. Ademais, também não foi respeitado o procedimento legal para a incorporação de medicamento à política pública municipal. Sequer houve o atendimento do § 1º, do art. 3º, da Lei 13.979/2020, caso se admita que o reconhecimento da situação de emergência em saúde, autorizaria a dispensa do procedimento de incorporação de fármaco previsto na Lei 8.080/1990.

Presente a plausibilidade do direito alegado e o perigo de dano, cabível a suspensão dos efeitos da Nota Técnica nº 01/2020, da SMS/POA.

Por outro lado, descabe o acolhimento da pretensão de impedimento de que o Prefeito Municipal e o Secretário Municipal da Saúde externem publicamente posição sobre o cabimento do tratamento precoce.

Cercear o direito de manifestação, que em nada afeta a vedação de distribuição dos medicamentos indicados na NT 01/2021, representaria censura à liberdade de expressão dos agentes públicos. Razão pela qual tal pedido vai desacolhido.

Em razão do exposto, defiro, em parte, a tutela de urgência, para:

  1. suspender os efeitos da Nota Técnica nº 01/2020, da Secretaria Municipal da Saúde de Porto Alegre, vedando a dispensação e distribuição dos medicamentos Ivermectina, Azitromicina, Hidroxicloroquina e Cloroquina para fins de tratamento precoce da Covid- 19, enquanto não existirem evidências robustas, baseadas em pesquisas clínicas e reconhecidas pela comunidade científica, da eficácia deles para o tratamento precoce da patologia;
  1. fica assegurado ao MPOA a dispensação dos medicamentos ivermectina e azitromicina, que integram a REMUME, para as demais doenças em que possuem indicação de

Intimem-se, MP, inclusive; sendo o Prefeito Municipal e o Secretário Municipal da Saúde pessoalmente, para que providenciem o imediato cumprimento da ordem deferida. Os mandados serão cumpridos pelo Serviço de Plantão dos Oficiais de Justiça e serão acompanhados de cópias desta decisão.

O Prefeito, quando da intimação para cumprimento da liminar, também deverá ser citado para contestar a ação, querendo, no prazo de 20 dias.

Cite-se o Município.

Intime-se a autora Fernanda para, em 10 dias, regularizar sua representação processual, pena de reconhecimento de sua ilegitimidade ativa.

Diligências.


 Segue documento na íntegra: DECISÃO_Ação_popular_contra_distribuição_de_medicamento_sem_eficácia_RS.pdf