DECISÃO - Liberdade provisória ao custodiado - RJ

Processo no omissis 

SENTENÇA 

O Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro ofereceu denúncia em face de omissis imputando-lhe as práticas das condutas tipificadas nos artigos 33 e 35 da Lei 11.343/06, narrando as alegações contidas na peça inicial de fls. 02/02B, que veio instruída pelos autos de Inquérito Policial instaurado por força de prisão em flagrante acostado às fls. 02C/116, onde consta de mais relevante os autos de apreensões de fls. 12/14 e a audiência de custódia de fls. 30/verso ocasião em que foi concedida liberdade provisória ao custodiado, efetivada conforme certidão de fl. 35, interpondo o Ministério Público recurso contra a decisão. 

Juntada de documentos e procuração pela defesa às fls. 36/55 dos autos. 

Decisão às fl. 118 e verso rejeitando a denúncia e declarando prejudicado o recurso interposto. 

Manifestação do Ministério Público à fl. 123 interpondo recurso em sentido estrito. 

Certidão de tempestividade do recurso à fl. 124. 

Recebido o recurso à fl. 125. 

Razões do recorrente às fls. 126/133. 

Intimação do denunciado, em cartório, conforme fl. 135, quando manifestou o desejo de ser patrocinado por advogado. 

Contrarrazões defensivas às fls. 139/140. 

Juízo de retratação à fl. 141, mantendo a decisão impugnada. 

Autos remetidos ao segundo grau à fl. 151. 

Acórdão de fls. 133/138 dando provimento ao recurso para receber a denúncia. 

Regular notificação do réu à fl. 158. 

Folha de Antecedentes Criminais às fls. 161/165. 

Defesa Prévia de Alison às fls. 167/168. 

Decisão de recebimento da denúncia à fl. 183. 

Audiência de instrução e julgamento às fls. 211/217 ocasião em que não respondeu o acusado, não mais encontrado no endereço contido no feito conforme fls. 158 e 169, razão pela qual foi decretada sua revelia, dando-se prosseguimento ao feito na forma do artigo 367 do Código de Processo Penal. Presente o patrono do acusado. Em seguida, foram ouvidas duas testemunhas arroladas pela acusação, conforme termos em apartado, em depoimentos gravados mediante registro audiovisual digital nos termos do parágrafo 2o do artigo 405 do CPP, cuja mídia segue acostada aos autos, informando a defesa não dispor de prova oral a produzir, ficando prejudicado o interrogatório por conta da revelia. Pelo Ministério Público foi requerida a juntada aos autos da FAC atualizada do denunciado, bem como que certifique o cartório se já se encontram acostados ao feito os laudos pertinentes aos bens apreendidos, nada requerendo a defesa nesta fase. 

Folhas de Antecedentes criminais atualizadas às fls. 229/233 e 263/267. Laudo de exame e descrição de material às fls. 276/277. 

Laudo de exame de entorpecente às fls. 278/280. 

Alegações finais pelo Ministério Público às fls. 284/292 requerendo seja julgada parcialmente procedente a pretensão punitiva do Estado para condenar o acusado como incurso nas sanções penais previstas no artigo 33 c/c. § 4o da Lei 11.343/06, bem como a sua absolvição quanto a imputação do delito previsto pelo artigo 35 da Lei 11/343/06, na forma do artigo 386, inciso VII do Código de Processo Penal. 

Alegações finais pela defesa às fls. 298/308 pugnando pela absolvição do acusado. Caso não seja este o entendimento, pugna pelo reconhecimento da tese de erro de tipo. Subsidiariamente, requer a aplicação do § 4o do artigo 33 da Lei 11.343/06, fixação de pena em regime aberto, bem como a substituição da pena privativa de liberdade por restritiva de direitos e, por fim, a concessão ao réu de recorrer em liberdade. Novo laudo de material às fls. 312/313. 

Novo laudo de entorpecente às fls. 314/316.

Ciência do Ministério Público à fl. 327 reiterando, na íntegra, as alegações finais outrora apresentadas. 

Ciência da defesa à fl. 330, reiterando, igualmente, o teor das alegações finais já apresentadas. 

Feito breve relatório, DECIDO: 

No que concerne, de início, ao artigo 35 da Lei de Entorpecentes, cuja conduta típica foi inicialmente imputada ao réu pela denúncia, a melhor doutrina processual penal pátria vem mais recentemente se pacificando no sentido de inadmitir a possibilidade de condenação na hipótese de pedido absolutório formulado pelo Ministério Público, entendendo desta forma não recepcionado o artigo 385 do Código de Processo Penal frente ao sistema acusatório acolhido pelo ordenamento constitucional em vigor. 

Cito Geraldo Prado1 (as notas no texto estão no original): 

Como o contraditório é imperativo para a validade da sentença que o juiz venha a proferir, ou, dito de outra maneira, como o juiz não pode fundamentar sua decisão condenatória em provas ou argumentos que não tenham sido objeto de contraditório, é nula a sentença condenatória proferida quando a acusação opina pela absolvição.2 O fundamento da nulidade é a violação do contraditório (artigo 5o, inciso LV, da Constituição da República). Como destaca Badaró, “a regra da correlação entre acusação e sentença é uma decorrência do princípio do contraditório”.3 Avançando sobre o tema, o culto professor paulista sublinha que, na atualidade, não é correto limitar a idéia – e o alcance – do contraditório apenas ao debate sobre questões de fato.4 Também as questões de direito estão afetas ao contraditório, pois que podem estar marcadas 

1 PRADO, Geraldo L.M.. Sistema Acusatório. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005, p. 190. 2 Não é este o entendimento do Supremo Tribunal Federal. No acórdão proferido em HC 82.844/RJ, 2a Turma, Relator Min. Nelson Jobim, publicado em 28/05/04, fixou-se que é significativo o fato de o Ministério Público ter sugerido a absolvição do réu, sugestão acatada pelo juiz de primeiro grau, para determinar a absolvição. No caso o Assistente do Ministério Público recorreu da sentença absolutória e obteve a condenação em segundo grau. Esta condenação foi atacada por Habeas Corpus. 3 BADARÓ, Gustavo Henrique R. Ivahy. Correlação entre acusação e sentença. São Paulo: RT, 2000, p. 27. 4 Idem, p. 32. 3

pela controvérsia a ser esclarecida mediante escolha entre duas ou mais teses pertinentes ao mesmo tema.5 Assim, quando em alegações finais o Ministério Público opina pela absolvição do acusado o que ocorre em concreto, no processo, é que o acusador subtrai do debate contraditório a matéria referente à análise das provas que foram produzidas na etapa anterior e que possam ser consideradas desfavoráveis ao réu. Como a defesa poderá reagir a argumentos que não lhe foram apresentados? Esta é, em resumo, a posição de Santiago Martínez, ao avaliar a posição dos tribunais argentinos sobre o assunto. 6 

O pedido absolutório subtrai à defesa a possibilidade de contra argumentar os fundamentos de uma condenação. Melhor dizendo: se o Ministério Público pede a absolvição, uma condenação surpreenderia a defesa, que não teria o ensejo de rebater teses condenatórias que simplesmente inexistiram. Assim, condenar sem pedido condenatório viola a ampla defesa e o contraditório. 

Alcançando a mesma conclusão porém por caminho diverso, Aury Lopes Jr. ensina: 

E por que, então, o juiz não pode condenar quando o Ministério Púbico pedir a absolvição? Exatamente porque o poder punitivo estatal — nas mãos do juiz — está condicionado à invo- cação feita pelo Ministério Público através do exercício da pretensão acusatória. Logo, o pedido de absolvição equivale ao não exercício da pretensão acusatória, isto é, o acusador está abrindo mão de proceder contra alguém. Como consequência, não pode o juiz condenar, sob pena de exercer o poder punitivo sem a neces- sária invocação, no mais claro retrocesso ao modelo inquisitivo. Condenar sem pedido é violar, inequivocamente, a regra do fundante do sistema acusatório que é o ne procedat iudex ex officio. Também é rasgar o Princípio 

5 Exemplo disso é a questão sobre a insignificância de determinada ação não negada pelo réu. O único debate no processo pode ser acerca da qualificação de comportamento insignificante – e atípico – ou não. Negar o contraditório sobre este ponto é esvaziar o princípio constitucional e retornar ao tempo do paleopositivismo, abandonado pela ideologia de princípios da Constituição da República de 1988, no Brasil. 6 MARTÍNEZ, Santiago. La acusacion como presupuesto procesal y alegato absolutorio del Ministerio Publico Fiscal: observaciones sobre una cuestión recurrente. Buenos Aires: Fabian J. Di Placido, 2003. 

da Correlação, na medida em que o espaço decisório vem demarcado pelo espaço acusatório e, por decorrência, do espaço ocupado pelo contraditório, na medida em que a decisão deve ser construída em contraditório (Fazzalari). 7 

Se o Estado Administração acusa (leia-se: propõe uma denúncia) dizendo "aqui, a princípio, há crime", e ao final, encerrada toda a instrução e colhidas todas as provas sobre o crivo das garantias constitucionais diz "não, aqui não há crime", isto importa em que não teria sido proposta a ação desde o início se houvesse já clareza quanto ao fato à época da propositura da inicial, i.e., que o Ministério Público pediria o arquivamento das peças de informação ou do Inquérito Policial diante das provas que só passaram a existir depois, não podendo o servir devido processo legal para prejudicar o réu. 

Desta feita, seria teratológico o Estado Juiz condenar quando o Estado Administração sequer acusaria! Por outras palavras, se o processo visa esclarecer os fatos e, esclarecidos, a acusação se convence que sequer acusaria, não pode haver condenação se o processo, desde o início, sequer deveria ter sido deflagrado. Do contrário, restaria violado o princípio acusatório. 

Lembremos que o Código de Processo Penal deve ser analisado sob o foco constitucional e convencional, i.e., deve passar pelo filtro de constitucionalidade e de convencionalidade. Pelo acima exposto, as regras que possibilitam a condenação apesar do pedido absolutório do Ministério Público não passam por tais filtros, logo, não foram recepcionadas, o que ora declaro. 

Ressalte-se que este Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro tem, em diversos julgados, encampado a tese aqui adotada. Por exemplo, no aresto proferido na Apelação Criminal 0059447- 14.2014.8.19.0004, relator o Des. Paulo Baldez, a 5a Câmara Criminal sustentou, de forma unânime, na fundamentação do acórdão, o seguinte 8: 

Quanto à possibilidade de prolação de um decreto condenatório quando a Acusação pugna pela absolvição, convém ressalvar o entendimento firmado por este Relator, no 

7 LOPES JR., Aury. Por que o juiz não pode condenar quando o Ministério Público pedir a absolvição? Disponível em <undefined absolvicao>. Acesso em 05/12/2014. 8 No mesmo sentido os acórdãos na Apelação Criminal 0080326-61.2008.8.19.0001 e no Recurso em Sentido Estrito 0053684-71.2010.8.19.0004. 

sentido de que a manifestação pela absolvição exarada pelo Ministério Público, titular do exercício da ação penal, por força do art. 129, I, da Constituição Republicana, esvazia o objeto da ação penal, não restando ao Magistrado outra alternativa senão a absolvição, sob pena de violação ao princípio acusatório e ao devido processo legal, ambos com sede constitucional e dos mais caros ao Estado Democrático de Direito vigente. 

Neste mesmo sentido tem caminhado a 6a Câmara Criminal do Tribunal de Justiça, valendo citar (eis que se trata de entendimento quase pacificado perante aquele órgão jurisdicional) o seguinte julgado, a título meramente exemplificativo9: 

0354390-14.2015.8.19.0001 - APELAÇÃO Des(a). LUIZ NORONHA DANTAS Julgamento: 18/04/2017 SEXTA CÂMARA CRIMINAL APELAÇÃO CRIMINAL - PENAL E PROCESSUAL PENAL - ROUBO TRIPLAMENTE CIRCUNSTANCIADO PELO EMPREGO DE ARMA, CONCURSO DE PESSOAS E RESTRIÇÃO A LIBERDADE DA VÍTIMA E RECEPTAÇÃO - EPISÓDIO OCORRIDO NO BAIRRO DE SANTA CRUZ, COMARCA DA CAPITAL - IRRESIGNAÇÃO DEFENSIVA, DIANTE DO DESENLACE CONDENATÓRIO FRENTE AO ROUBO DUPLAMENTE CIRCUNSTANCIADO PELO EMPREGO DE ARMA E CONCURSO DE AGENTES E À RECEPTAÇÃO, PLEITEANDO SUA ABSOLVIÇÃO QUANTO AO DELITO DE RECEPTAÇÃO, SOB ALENTADA FRAGILIDADE PROBATÓRIA, BEM COMO QUE SEJA AFASTADA A EXACERBADORA DO EMPREGO DE ARMA, UMA VEZ QUE AS TESTEMUNHAS TERIAM CONFIRMADO EM JUÍZO, QUE O RECORRENTE NÃO ESTARIA ARMADO, SEM PREJUÍZO DA FIXAÇÃO DA PENA-BASE DO CRIME DE ROUBO NO SEU MÍNIMO VALOR LEGAL, DIANTE DO RECONHECIMENTO DA ATENUANTE DA CONFISSÃO - PARCIAL PROCEDÊNCIA DA 

9 No mesmo sentido os arestos proferidos nos recursos 0245783-09.2012.8.19.0001, 0354390- 14.2015.8.19.0001, 0483525-84.2012.8.19.0001, 0307655-83.2016.8.19.0001, 0289876- 23.2013.8.19.0001, 0131197-51.2015.8.19.0001, 0049476-58.2007.8.19.0001 ou 0259781- 39.2015.8.19.001. 

PRETENSÃO RECURSAL - INSUSTENTÁVEL SE MOSTROU O JUÍZO DE CENSURA QUANTO AO DELITO PATRIMONIAL ACESSÓRIO, QUER PELA INCOMPROVAÇÃO DE QUE O IMPLICADO EFETIVAMENTE CONHECIA A PRÉVIA NATUREZA ILÍCITA DO VEÍCULO QUE DIRIGIA, APRESENTANDO-SE COMO PLAUSÍVEL A SUA VERSÃO A RESPEITO, QUER POR VIOLAÇÃO AOS PRINCÍPIOS AFETOS AO SISTEMA ACUSATÓRIO: DA INÉRCIA JUDICIAL, DA IMPARCIALIDADE, DO CONTRADITÓRIO, DA SEPARAÇÃO ENTRE OS PODERES DA REPÚBLICA, DA EXCLUSIVIDADE DO PARQUET NA PROMOÇÃO DA AÇÃO PENAL PÚBLICA, NA MEDIDA EM QUE DESCABE AO MAGISTRADO CONDENAR QUANDO O DOMINUS LITIS REQUEREU A ABSOLVIÇÃO CORRESPONDENTE - DESTARTE, IMPÕE-SE O DESFECHO ABSOLUTÓRIO QUANTO A ESTA PARCELA DA IMPUTAÇÃO COM FULCRO NO DISPOSTO DO ART. 386, INC. No VII DO C.P.P. Omissis PARCIAL PROVIMENTO DO APELO DEFENSIVO. 

Por tais motivos, a absolvição quanto ao delito previsto ao artigo 35 da Lei de Entorpecentes mostra-se impositiva. 

Passando ao delito contido no artigo 33 da Lei de Entorpecentes e, neste ponto, passando à análise do presente feito através da apreciação da prova testemunhal trazida aos autos pelas partes, temos que as testemunhas ouvidas em Juízo afirmaram, em suma, o que segue: 

Omissis – que é policial militar; que nesse dia teve uma operação dentro da comunidade de Parada de Lucas; que teve um certo horário, já fora da comunidade, mandaram averiguar uma casa aonde havia elementos; que era um terreno com três casas; que quando chegaram no beco, ele vinha saindo com uma mochila na mão; que ele logo levantou a mão, foram até ele e havia com ele na mochila entorpecentes e rádio; que bateram as outras casas com autorizações dos moradores e não acharam mais ninguém; que ele estava num beco e não tinha opção, logo se rendeu; que acha que ele tinha cerca de 25 anos; que nunca o tinha visto antes; que lá atua o TCP; que as drogas tinham inscrições do TCP; que não lembra se o rádio estava ligado; que atua em rádio patrulha atendendo 190; que 

desse beco só saiu ele; que disse que aquela droga ele estava tirando da favela para alguém, para levar para fora, mas não sabia o que tinha na mochila. 

Omissis – que é policial militar; que se recorda da ocorrência; que estava sendo realizada operação em Parada de Lucas e Vigário Geral; que quando isso ocorre elementos adentram Vigário Geral para se esconder; que as localidades são contíguas; que veio informação de 190 que elementos tinham entrado numa casa e feito um senhor de refém; que estavam no local atentando para a casa, quando se depararam com um cidadão no beco com uma mochila; que o abordaram e encontraram na mochila dinheiro, grande quantidade de drogas e rádio; que o depoente ficou balançado; que ele disse que mora em comunidade e mandaram ele tirar a mochila dali; que ele disse que era trabalhador, trabalhava com o pai e foi obrigado; que ele ficou muito assustado; que ele não estava marrento, se rendeu automaticamente; que quanto ao proprietário da casa, três pularam para lá, bateram o quintal mas não encontraram; que o proprietário disse que os três que estavam ali pularam e foram embora; que no local atua o TCP; que nas drogas havia inscrição do TCP; que ele era jovem; que ele mencionou que trabalhava com o pai nesse comércio; que ele ficou surpreso com a abordagem e disse que sequer sabia o que tinha na mochila; que ele disse que mandaram pegar a mochila e não sabia o que tinha; que foi uma surpresa para ele saber o que tinha ali. 

O interrogatório do acusado restou prejudicado por conta da revelia, o que de forma alguma será interpretado em seu desfavor. 

Sendo esta a prova oral contida no feito e encontrando-se a materialidade dos fatos (agora sim...) perfeitamente demonstrada pelos laudos técnicos e autos de apreensões de fls. 12, 13, 14, 276 e 278, temos que merece ser julgado também aqui improcedente a pretensão punitiva estatal. 

Qualquer julgador que não more no mundo da lua e conheça, ainda que à distância, o mundo cão estabelecido nas comunidades carentes de nossa malfadada cidade entregue a uma absurda, contraproducente e sanguinária guerra às drogas, sabe perfeitamente que é absolutamente corriqueiro que traficantes exijam – inclusive sob pena de morte do próprio ou de familiares – de moradores das localidades dominadas por associações criminosas que guardem ou transportem entorpecentes visando retirá-los do local em meio a batidas policiais, como ocorreu na espécie.

A prova trazida ao feito nos fornece, assim, dúvida razoável em torno da culpabilidade da conduta imputada. 

Isto porque enquanto os dois policiais ouvidos em Juízo afirmam que o denunciado a eles confessou que estava retirando o material de dentro da comunidade, o militar Gláucio atesta, com sua experiência de policial, que “ficou balançado” com a fala do réu naquele momento da abordagem ao narrar, muito nervoso e sem estar “marrento”, que tinha sido obrigado pelos traficantes a retirar a mochila daquele local durante a batida policial, sendo que sequer sabia o que ela continha (embora seja lícito supor que imaginasse tratar-se de algo ilícito, pelo que incabível falar de erro de tipo, como alega a denodada defesa técnica). 

Os policiais testemunham, ademais, que o acusado rendeu- se assim que avistou-os, sendo que nunca o viram antes pela localidade, vindo aos autos, outrossim, farta comprovação (fls. 36/55) acerca de atividade lícita do acusado, endereço fixo, isto sem olvidar que, instaurado o processo em 2017, até recentemente (Folha de Antecedentes Criminais às fls. 263/267) não havia voltado a se envolver com a traficância – fato raro em situações como a presente em que jovens, quando efetivamente envolvidos com a traficância ilícita de entorpecentes, são comumente obrigados a retornar ao tráfico visando “pagar” a carga perdida para os agentes da lei. 

Do exposto verifica-se que, havendo a concreta possibilidade, admitida de forma expressa pelo policial ouvido em Juízo, da ocorrência de causa suficiente à configuração de inexigibilidade de conduta diversa decorrente da ameaça de traficantes ao morador, e não tendo a acusação cabalmente afastado essa possibilidade demonstrando (leia-se: comprovando) a inexistência desta causa de exclusão da culpabilidade, impõe-se aqui a aplicação do princípio in dubio pro reo. 

Vale sempre lembrar que o ônus da prova no que tange às imputações contidas na denúncia compete inteira e exclusivamente à acusação, não cabendo aos réus, a princípio, fazer prova negativa. Neste sentido o posicionamento adotado por Aury Lopes Júnior: 

A partir do momento em que o imputado é presumidamente inocente, não lhe incumbe provar absolutamente nada. Existe uma presunção que deve ser destruída pelo acusador, sem que o réu (e muito menos o juiz) tenha qualquer dever de contribuir nessa desconstrução (direito de silêncio - nemo tenetur se detegere). 

esclarece que a acusação tem a carga de descobrir hipóteses e provas, e a defesa tem o direito (não dever) de contradizer com contra- hipóteses e contraprovas. O juiz, que deve ter por hábito profissional a imparcialidade e a dúvida, tem a tarefa de analisar todas as hipóteses, aceitando a acusatória somente se estiver provada e, não a aceitando, se desmentida ou, ainda que não desmentida, não restar suficientemente provada. É importante recordar que, no processo penal, não há distribuição de cargas probatórias: a carga da prova está inteiramente nas mãos do acusador, não só porque a primeira afirmação é feita por ele na peça acusatória (denúncia ou queixa), mas também porque o réu está protegido pela presunção de inocência. 10 

É menos mau, num Estado Democrático de Direito regido pelo princípio favor rei, na dúvida, absolver um culpado que condenar um inocente. Esta a razão pela qual se adota no processo penal (inclusive no pátrio, segundo a melhor doutrina) o exigente standard probatório conhecido como BARD (beyond any reasonable doubt, o que entre nós foi traduzido como “para além de toda dúvida razoável”). 

Vale ressaltar neste ponto as lições de Janaina Matida e Antonio Vieira: 

Em meio ao cenário de críticas às arbitrariedades judiciais, à falta de controlabilidade da racionalidade de suas decisões, é que a noção de standard de prova ganhou especial atenção. Sua função consiste em fixar o grau de corroboração suficiente para que uma hipótese seja considerada verdadeira. Quanto suporte probatório uma hipótese precisa apresentar para que seja considerada verdadeira e, na sequência, seja incluída como premissa menor do raciocínio decisório? Nos casos individuais, a determinação suficiente da ocorrência do fato juridicamente relevante é condição inafastável da justificada condenação de alguém e essa é precisamente a função que um standard de prova deve cumprir. Os standards mais conhecidos são originários da cultura jurídica estadunidense: o preponderance of the evidence (de agora em diante, PoE), o clear and 

10 LOPES Jr., Aury. Direito Processual Penal. São Paulo: Saraiva, 11a edição, 2014, p. 562.

convincing evidence (de agora em diante, CCE) e o beyond any reasonable doubt (BARD) pretendem refletir uma gradação quanto à exigência de corroboração probatória para que determinada hipótese seja considerada verdadeira. Essa gradação vai, respectivamente, da menor à maior exigência de corroboração. Ou seja: entre os três standards, o PoE é o menos exigente enquanto que o BARD é o mais exigente. Ao CCE sobra a posição intermediária de exigir menos do que o BARD e mais do que o PoE. 

A atribuição de probabilidades matemáticas a cada um deles é um recurso frequentemente utilizado por parte dos autores de modo a esclarecer as diferentes exigências dos standards. As probabilidades matemáticas indicadas como representativas de cada um deles são as seguintes: BARD é de 95%, CCE é de 75% e do PoE é de 50%+1 (qualquer ponto acima de 50%). Significa que, para que uma hipótese seja considerada verdadeira segundo o BARD ela tem de alcançar uma probabilidade (de ser verdadeira) de 95% ou mais; já para que seja considerada verdadeira segundo o CCE ela tem de alcançar uma probabilidade em torno de 75%, e, por último, caso estejamos diante do PoE, será suficiente se atingir qualquer probabilidade superior a 50% de chance de ser verdadeira. Ou seja: Uma mesma hipótese x pode ser considerada verdadeira quando se lhe aplique o PoE e não verdadeira (ou, em termos menos precisos, falsa) quando seja o BARD o standard aplicável. Isso acontece porque o mesmo conjunto probatório pode ser suficiente para alcançar o patamar de 50%+1 de probabilidade de ser verdadeira e insuficiente para alcançar o patamar de 95% de probabilidade de ser verdadeira. Logo, é certo concluir que a imposição de distintos standards de provas serve a dificultar (ou facilitar, a depender de qual perspectiva se assume) determinadas decisões sobre os fatos. 

Não é por outra razão que o BARD é aplicável originalmente no âmbito da Justiça criminal e impõe a exigência de 95% de probabilidade à hipótese da acusação. Enquanto isso, na Jurisdição civil atuam standards de prova menos exigentes, os quais produzem assimetrias menos profundas entre os resultados possíveis. Desde Blackstone, reconhecemos que, no âmbito da Justiça criminal, é manifestamente pior condenar um inocente do que absolver um culpado. A formulação do BARD teria em sua origem a pretensão de dificultar a condenação de inocentes. Como? Dificultando as condenações em geral. Se o sistema criminal passa a exigir robustamente mais da hipótese de condenação para que seja considerada verdadeira (95%), então, dificulta-se as condenações e, com isso, também as condenações de inocentes. O outro lado dessa moeda é que as absolvições de culpados se veem facilitadas (pense-se que as hipóteses acusatórias que atinjam probabilidades altas como 80, 90% teriam de ser descartadas com base em um standard de prova tão exigente. A hipótese mais provável seria considerada perdedora para dar lugar a uma hipótese menos provável). 11 

No caso concreto, como visto, não se desincumbiu o órgão acusatório estatal, com a devida vênia, a contento, de seu ônus de comprovar, além de qualquer dúvida razoável, a culpabilidade do denunciado afastando a possível ocorrência de inexigibilidade de conduta diversa e demonstrando, pelo contrário, fosse-lhe exigível outra conduta que não aquela típica e antijurídica que praticou, a importar, também aqui e agora quanto ao artigo 33 da Lei de Entorpecentes, inexoravelmente, na absolvição do réu. 

Por tudo o que foi exposto e devidamente fundamentado, julgo totalmente improcedente o pedido contido na denúncia para absolver, como de fato absolvo omissis quanto à acusação de ter praticado as condutas tipificadas nos artigos 33 e 35 da Lei 11.343/06, na forma do inciso VII do artigo 386 do Código de Processo Penal. Sem custas. 

P. Vista ao Ministério Público. 

Oficie-se imediatamente determinando a inutilização das substâncias ilícitas apreendidas. 

Intime-se o réu, revel, por edital com prazo de trinta dias para ciência da sentença e quanto ao prazo recursal e, transcorrido o prazo, intime-se o patrono constituído. 

11 MATIDA, Janaina e VIEIRA, Antonio. Para além do BARD: uma crítica à crescente adoção do standard de prova “para além de toda a dúvida razoável” no processo penal brasileiro, Revista Brasileira de Ciências Criminais, vol. 156, p. 221-248, Jun/2019.

Transitada em julgado, comunique-se, anote-se, dê-se baixa, transcorridos noventa dias sem manifestação de eventual interessado oficie-se autorizando a aplicação do artigo 123 do Código de Processo Penal quanto aos rádios, bases e calculadora apreendidos e, tudo feito, arquive-se. 

Rio de Janeiro, 23 de julho de 2020. 

MARCOS AUGUSTO RAMOS PEIXOTO

JUIZ DE DIREITO