NOTA TÉCNICA SOBRE O SUPERENCARCERAMENTO DE ADOLESCENTES

A Associação Juízes para a Democracia (AJD), entidade não governamental, de âmbito nacional, que tem como um de seus objetivos a defesa dos direitos e garantias fundamentais e a manutenção do Estado Democrático de Direito, no dia mundial de combate ao trabalho infantil e, por consequência, de proteção à infância e juventude, apresenta a presente NOTA TÉCNICA acerca do super encarceramento de adolescentes, analisado na decisão do Supremo Tribunal Federal proferida no Ag. Reg. do Habeas Corpus n. 143.988 de 2019, impetrado pela Defensoria Pública, e a decisão unânime proferida pelo Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro na Apelação Cível n. 0075699-67.2015.8.19.0001 contra o Estado do Rio de Janeiro, de que resultou a criação da Central de Regulação de Vagas do Departamento Geral de Ações Socioeducativas – DEGASE, disciplinando procedimentos administrativos para a implantação e transferência de adolescentes em conflito com a lei nas Unidades respectivas.

Segundo o relatório do INFOPEN – Informações do Departamento Penitenciário Nacional do Ministério da Justiça, publicado em 2017, o Brasil tinha em junho de 2016 mais de 726.000 pessoas encarceradas. (http://depen.gov.br/DEPEN/noticias-1/noticias/infopen-levantamento-nacional-deinformacoes-penitenciarias-2016/relatorio_2016_22111.pdf). Está, portanto, entre os cinco países que mais aprisionam no mundo.

O Relatório Anual (2017) / Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (MNPCT) do governo federal retrata o recorte de raça e condição econômica dos adolescentes encarcerados, denuncia condições desumanas de encarceramento e prática de tortura, e faz 21 recomendações insuscetíveis de serem observadas em condições de superencarceramento, dentre as quais a de “promover todas as medidas necessárias para a adequação de estruturas físicas das unidades de internação” (Relatório Anual (2017) / Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (MNPCT)).

A preocupação com essa realidade e a necessidade de alterá-la com urgência, resultou a criação da Central de Regulação de Vagas do Departamento Geral de Ações Socioeducativas – DEGASE.

A Constituição brasileira estabelece a prioridade das políticas de atendimento à infância e à juventude, nos termos do seu artigo 227, dispondo expressamente que as medidas socioeducativas privativas de liberdade estão submetidas ao princípio da excepcionalidade, conforme previsto no art. 227, § 3º, V, da CRFB. A lei que estabelece os direitos e a proteção da criança e do adolescente, Lei nº 8.069/1990 (Estatuto da Criança e do Adolescente), prevê a obrigatoriedade de efetivação dos direitos referentes à vida, ao respeito e à dignidade, que consistem na inviolabilidade da integridade física, psíquica e moral e na proibição de tratamento desumano e cruel, e somente admite a medida socioeducativa de internação (medida privativa de liberdade) em caso de ato infracional cometido mediante grave ameaça ou violência à pessoa, por reiteração no cometimento de outras infrações graves e por descumprimento reiterado e injustificável da medida anteriormente imposta, na literalidade de seu art. 122, estabelecendo ainda que “em nenhuma hipótese será aplicada a internação, havendo outra medida adequada” (§2º. do art. 122).

A Lei Federal nº 12.594/12 (SINASE), que estabelece o rito e garantias da execução das medidas socioeducativas, prevê que é direito do adolescente ser inserido em meio aberto em caso de superlotação das unidades, se tiver cometido ato não-violento (artigo 49, II: “São direitos do adolescente submetido ao cumprimento de medida socioeducativa, sem prejuízo de outros previstos em lei: (...) II - ser incluído em programa de meio aberto quando inexistir vaga para o cumprimento de medida de privação da liberdade, exceto nos casos de ato infracional cometido mediante grave ameaça ou violência à pessoa, quando o adolescente deverá ser internado em Unidade mais próxima de seu local de residência;”).

Em termos de precedentes judiciais, o Supremo Tribunal Federal, por ocasião do julgamento do Recurso Extraordinário nº. 641.320, em repercussão geral, reconheceu a necessidade de adoção, pelo Estado, de medidas que contemplem soluções para otimizar as vagas existentes no sistema penitenciário e que ofereçam alternativas à institucionalização.

Além de tal precedente, importa a guisa de exemplo de uma política judiciária de encarceramento em massa, mencionar a súmula 492 do Superior Tribunal de Justiça, que estabelece: “O ato infracional análogo ao tráfico de drogas, por si só, não conduz obrigatoriamente à imposição de medida socioeducativa de internação do adolescente”.

Tais precedentes são aplicáveis aos adolescentes por força do art. 35, I, da Lei do SINASE, do mesmo modo que a Resolução nº. 05/2016 do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária, que “dispõe sobre os indicadores para fixação de lotação máxima nos estabelecimentos penais, numerus clausus”.

Na mesma esteira, a Resolução nº 165 do Conselho Nacional de Justiça estabelece normas gerais para o atendimento pelo Poder Judiciário do adolescente em conflito com a lei, na internação provisória e no cumprimento das medidas socioeducativas.

Há, ainda, a recomendação contida no relatório do Subcomitê de Prevenção da Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes da ONU, datado de 24 de novembro de 2016, no sentido de que o Estado brasileiro “revise as práticas de detenção juvenil e as harmonize com os padrões internacionais, principalmente àquelas relacionadas à não discriminação, à presunção de inocência, ao acesso a assistência jurídica, à proibição de punição corporal e ao uso de privação de liberdade somente como medida de último recurso”, que se encontra em harmonia com Convenção sobre os Direitos da Criança (especialmente os artigos 2 (1) 37, 39 e 40); as Regras Mínimas das Nações Unidas para a Administração da Justiça ( “Regras de Pequim”) adotadas pela deliberação 40/33 da Assembleia Geral (especialmente as Regras 7.1, 15, 17.1 (b) e 17.3) e as Regras das Nações Unidas para a Proteção dos Menores Privados de Liberdade, adotadas pela deliberação 45/113 da Assembleia Geral (especialmente as Regras 1, 4, 63 e 67).

Por fim, o Mecanismo Estadual de Prevenção e Combate à Tortura do Rio de Janeiro recomendou, em seu relatório anual de 2016, “a redução imediata do número de adolescentes privados de liberdade até o limite máximo de capacidade da unidade de internação e que, a médio prazo, seja observado o número máximo de 40 adolescentes estabelecido como parâmetro pelo SINASE”, o estímulo e apoio às “medidas socioeducativas em Meio Aberto” e a aplicação do enunciado da “Súmula do Superior Tribunal de Justiça de 2012 que dispõe quanto à limitação de não aplicação de medida privativa de liberdade à adolescente autor de atos infracionais análogos a tráfico de drogas”.

A violação dos direitos e garantias dos adolescentes em conflito com a lei, especialmente os excluídos, negros e pardos moradores de rua, das periferias e favelas, caracterizada não só pela superlotação, como pelos maus tratos, tortura e morte dos adolescentes submetidos ao encarceramento, decorrentes da superlotação das unidades de internação do DEGASE, repercute para além de suas situações subjetivas, produzindo mais violência contra a sociedade, haja vista seus notórios efeitos criminógenos, deletérios e brutalizantes, sendo a humanização do trato dessa questão indispensável à promoção dos objetivos fundamentais da República (art. 3º da Constituição) e à desejada redução da criminalidade em nossa sociedade.

O Sistema Internacional de Defesa dos Direitos Humanos está inclusive analisando a questão da violação pela República Federativa do Brasil dos direitos e garantias da população de adolescentes submetidos ao encarceramento, a partir da Resolução da CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS de 25 de fevereiro de 2011 sobre “MEDIDAS PROVISÓRIAS A RESPEITO DO BRASIL ASSUNTO DA UNIDADE DE INTERNAÇÃO SOCIOEDUCATIVA”, que resolveu, a partir do caso UNIS do Estado do Espírito Santo:

    1. Que o Estado continue adotando de forma imediata todas as medidas que sejam necessárias para erradicar as situações de risco e proteger a vida e a integridade pessoal, psíquica e moral das crianças e adolescentes privados de liberdade na Unidade de Internação Socioeducativa, bem como de qualquer pessoa que se encontre neste estabelecimento. Em particular, a Corte reitera que o Estado deve garantir que o regime disciplinar se enquadre às normas internacionais na matéria. As presentes medidas provisórias terão vigência até 1º de julho de 2015.

 

    1. Que o Estado realize as gestões pertinentes para que as medidas de proteção à vida e à integridade pessoal, incluindo a atenção médica e psicológica dos socioeducandos, sejam planejadas e implementadas com a participação dos representantes dos beneficiários e que os mantenha informados sobre avanços em sua execução.

 

    1. Que o Estado apresente, a cada três meses, contados da notificação da presente Resolução, informação completa e detalhada sobre as atuações em seu conjunto realizadas para dar cumprimento às medidas provisórias decretadas, sobre a situação de risco dos beneficiários, e sobre as medidas de caráter permanente para garantir a proteção dos beneficiários nesta Unidade. A informação requerida deve incluir o mencionado no considerando 8 da presente Resolução.

 

    1. Que os representantes dos beneficiários apresentem suas observações aos relatórios do Estado dentro do prazo de quatro semanas, contado a partir da notificação dos relatórios estatal. Além disso, a Comissão Interamericana deverá apresentar suas observações aos escritos do Estado e dos representantes mencionados anteriormente dentro de um prazo de duas semanas, contado a partir da recepção dos escritos de observações dos representantes.

 

    1. Que a Secretaria notifique a presente Resolução à República Federativa do Brasil, aos representantes dos beneficiários das presentes medidas e à Comissão Interamericana de Direitos Humanos.



Diante desses elementos, a Associação Juízes para a Democracia manifesta-se pelo cumprimento imediato das decisões do Supremo Tribunal Federal e dos Tribunais de Justiça dos Estados, nos seus precisos termos, sendo imprescindível que os agentes políticos, em especial Juízes e Juízas de Direito, adotem todos os esforços para sua implementação.

É mister que haja o cumprimento do acordo que produziu a “Central de Regulação de Vagas do Departamento Geral de Ações Socioeducativas – DEGASE” reconhecido como oportunidade de mudança de rumos e possibilidade inicial de cumprimento da ordem jurídica da República Federativa do Brasil na construção do Estado Democrático de Direito. Tal acordo, disciplinando procedimentos administrativos para a implantação e transferência de adolescentes em conflito com a lei nas Unidades respectivas, deve ser encarado como política pública emergencial a fim de reduzir a superlotação das unidades de cumprimento de medidas socioeducativas de internação.

A AJD manifesta-se, ainda, no sentido de que o percentual de 119% de capacidade de vagas seja considerado o máximo intransponível nas atuais unidades de internação e eventualmente em futuras, devendo o limite de vagas ser respeitado de forma imediata, especialmente porque esse percentual, por si só, já desafia o conceito de respeito à dignidade humana, que está nos fundamentos de nossa Constituição.

Para além disso, a formação adequada de magistrados e promotores de justiça na área da infância e juventude é essencial para que se compreenda a importância do conhecimento dos direitos fundamentais da criança e do adolescente de modo prévio à lotação em órgãos relativos ao tema, em aperfeiçoamento contínuo e sujeito a revisão periódica.

Do mesmo modo, o paradigma da Justiça Restaurativa, nos moldes da Resolução nº. 225/2016 do CNJ, é de observância essencial em todas os juízos da infância e juventude do Estado do Rio de Janeiro, através da contratação de multiplicadores com comprovada experiência na implementação da Justiça Restaurativa em outros Estados da Federação, em política pública.

Brasil, 12 de junho de 2019.