Ato civil - político - pela memória de Moïse Kabagambe

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Foto: Bruno Mirandella

 

A juíza (aposentada) e coordenadora da AJD-RJ, Raquel Braga, participou nesta última terça-feira (8) do Ato Civil - Político - pela Memória de Moïse Kabagambe. O evento ocorreu no Circo Crescer e Viver, Rio de Janeiro, e reuniu juristas, acadêmicos, membros de organizações de direitos humanos, movimentos sociais, ativistas políticos e diversas personalidades engajadas na transformação da cidade do Rio. A família de Moïse também esteve presente. 

Além de exigir justiça para o jovem congolês espancado até a morte no Quiosque Tropicália, o ato também foi uma oportunidade para discutir as diversas formas de violência que moldam o cotidiano do Rio de Janeiro e buscar uma agenda que enfrente esse dilema. 

Moïse não foi um caso isolado

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Raquel Braga durante sua fala no ato/Foto: Bruno Mirandella

 

Durante o ato as entidades presentes tiveram a oportunidade para manifestar suas falas. Ao representar a AJD, Raquel Braga leu uma carta que escreveu juntamente a presidenta da Associação, Cristiana Cordeiro. O texto afirma que o assassinato brutal de Kabagambe não foi um caso isolado, mas parte de um contexto de brutalidade contra a vida de pessoas negras e pobres. Raquel citou dados sobre desaparecidos no Estado do Rio de Janeiro publicados pela Iniciativa Direito à Memória e Justiça Racial - IDMJR. "De 2003 a junho de 2021, 1,2 milhões de pessoas desapareceram no Estado do Rio de Janeiro, com concentração de 23% na Baixada Fluminense, sendo mapeados 21 cemitérios clandestinos nessa região, utilizados por milícias, grupos de extermínio, matadores e facções do tráfico", afirmou.

Raquel também salientou que qualquer iniciativa que vise dar um basta na barbárie instalada no dia a dia dos cidadãos fluminenses precisa partir das causas, sem cair na tentação de ideias ou propostas punitivistas. "A gênese da violência está na sociedade de classe e esse é um diagnóstico que deve ser enfrentado. O capitalismo, na forma atual que se apresenta, nas vestes do neoliberalismo, quer destruir leis, conquistas civilizatórias e fazer retroceder ao mundo sem direitos. Trata pessoas como mercadoria, despreza o trabalho, extingue direitos trabalhistas. Divide a luta contra a desigualdade em segmentos para afastar do prumo central e manter a elite privilegiada: branca, europeia, patriarcal e heteronormativa", disse Raquel.

Abaixo segue a carta na íntegra:

MOÏSE, RACISMO, XENOFOBIA E LUTA DE CLASSES

O brutal assassinato de Moïse Kabagambe, jovem refugiado congolês, não é isolado como demonstram os dados do primeiro Boletim de Desaparecidos Forçados, lançado na data de 08/02/2022, pela Iniciativa Direito à Memória e Justiça Racial - IDMJR. De 2003 a junho de 2021, 1,2 milhões de pessoas desapareceram no Estado do Rio de Janeiro, com concentração de 23% na Baixada Fluminense, sendo mapeados 21 cemitérios clandestinos nessa região, utilizados por milícias, grupos de extermínio, matadores e facções do tráfico.

A morte de Moïse é, mais uma vez, a exposição da ferida que rasga o corpo de nossa sociedade. E qualquer movimento no sentido de fazer cessar esse estado de coisas bárbaro que se instalou no estado do Rio de Janeiro e em muitas outras partes do país precisa partir de suas causas. Discutir a criminalidade, segundo proposto por esse grupo de entidades da sociedade civil, deve passar pela promoção da igualdade, pelo acesso a direitos fundamentais (saúde, educação, alimentação adequada, moradia, cultura), por todas as pessoas, e pelo repúdio total ao racismo e a qualquer outra forma de preconceito (LGBTQI+fobia, xenofobia e ataques aos credos e religiões). Tudo isto está assentado em nossa Constituição Federativa da República do Brasil. Não por acaso, querem rasgá-la!

A criminalidade, se enfrentada apenas sob a ótica da segurança pública, tende somente a crescer, e continuaremos operando sob a lógica punitivista e sob o signo da vingança, o que não conduz à pacificação social.

Artigo publicado no jornal O Estado de São Paulo, em 08/02/22, revela que o número de crianças de 6 e 7 anos que não sabem ler e escrever cresceu 66%, aumentando de 1,43 milhão, em 2019, para 2,39 milhões ano passado. Um levantamento feito pelo Instituto Sou da Paz aponta que, entre 2012 e 2019, a taxa de mortalidade por homicídio de jovens negros foi 6,5 vezes maior que a taxa nacional. Outro estudo, do Fórum Brasileiro de Segurança Pública e do Unicef (Fundo das Nações Unidas para a Infância) aponta que, das quase 35 mil mortes de jovens, entre 2016 e 2020 no Brasil, 80% eram de negros.

Repensar o papel da sociedade civil e garantir a presença do estado de direito em cada espaço do território, hoje dominado pelo crime organizado, é o nosso compromisso. E a brutalidade da ausência do Estado incide sobre os lutadores sociais, sejam eles trabalhadores ou lideranças políticas. As estatísticas dos assassinatos cresceram, já a partir da posse de Michel Temer. O assassinato de Marielle, após a intervenção militar no RJ, até hoje sem identificação dos mandantes, tem grande significado.   

O assassinato pelo qual estamos aqui, por Moïse, é uma síntese do grau de violência que ocorre na Cidade e dos problemas brasileiros fundamentais. Sem dúvidas, há a presença do racismo que constituiu o Brasil em todas as dimensões -  histórica, econômica, política e institucional -, daí a classificação de estrutural.

Contudo, se não identificarmos e enfrentarmos contundentemente as causas, não daremos conta de solucionar as consequências. É preciso ter claro que racismo, machismo e todas as fobias (xenofobia ou LGBTQI+ ou preconceitos religiosos) são consequências do sistema capitalista.

A gênese da violência está na sociedade de classe e esse é um diagnóstico que deve ser enfrentado. O capitalismo, na forma atual que se apresenta, nas vestes do neoliberalismo, quer destruir leis, conquistas civilizatórias e fazer retroceder ao mundo sem direitos. Trata pessoas como mercadoria, despreza o trabalho, extingue direitos trabalhistas. Divide a luta contra a desigualdade em segmentos para afastar do prumo central e manter a elite privilegiada: branca, europeia, patriarcal e heteronormativa.   

O desmonte do direito do trabalho, já com a Reforma das Leis, no Governo Temer, a destruição das nossas empresas pela Lava Jato, sob o comando de duas figuras, vendilhões da pátria, Sérgio Moro e Dallagnol, acabaram com os empregos e aumentaram consideravelmente a pobreza, a miséria e a violência.

Vejam que os poucos postos de trabalhos que remanesceram, ou que foram criados, expõem a precariedade, tanto que Moïse se viu sozinho, sem um Sindicato (ou colegas de classe) para fazer valer os seus direitos trabalhistas e teve como resposta um grau de agressões físicas bárbaras, que lhe custou a vida.

A implementação da política neoliberal de Bolsonaro aumentou consideravelmente a miséria, pobreza e violência. Esse ano é de eleições majoritárias e precisamos eleger um presidente que trabalhe pelos brasileiros. Outra tarefa fundamental é elegermos bons parlamentares: Deputados Federais e Estaduais: SEM BOAS LEIS OS VULNERABILIZADOS MORREM, SEM PRECISAR QUE OS MATEM.

O Governo de Bolsonaro, que já defendeu a legalização das milícias, acentuou o quadro de barbárie. Os milicianos têm disputado com os traficantes os territórios. A polícia militar trata as comunidades como se estivéssemos em guerra, entram atirando, desprezando o fato de que a grande maioria das pessoas que ali residem é constituída de trabalhadores e trabalhadoras. Atiram para matar e matam: crianças, estudantes e idosos.

O que dizemos é que no contexto de empobrecimento do país, as mortes ocorrem em áreas de baixa renda e podem incidir em qualquer pessoa dessa localidade.

E mais: a precariedade nas relações de trabalho mata de fome, mata sem necessidade de socos e pontapés, mata sem dar um tiro. Mata sem precisar desaparecer com as pessoas. Mata por falta de casas, de alimento e de saúde. A pobreza é o maior fator das mortes da nossa gente, vide o percentual de vulnerabilizados entre os quase 700 mil mortos com a pandemia do Covid 19, considerado o vírus da desigualdade - mulheres, a população negra e integrantes de grupos étnicos minoritários e, entre os trabalhadores, porteiros e empregadas domésticas, no topo da estatística de óbitos.

Precisamos atentar para o fato de que as 26 pessoas mais ricas do mundo detêm a mesma riqueza dos 3,8 bilhões mais pobres, que correspondem a 50% da humanidade, conforme indicam dados do relatório da OXFAM, de 2018. Os 10 homens (brancos) mais ricos do mundo acumularam cerca de US$ 500 bilhões desde que a pandemia começou, relatório OXFAM de 2021.

É urgente unirmos as pautas dos mais diversos grupos no combate à sociedade estruturada em classes, sem abandonar as pautas identitárias, mas com a clareza de que os grupos vulnerabilizados são consequência de um sistema injusto e opressor chamado capitalismo/neoliberalismo.

A pauta identitária, quer seja das mulheres, de orientação sexual, de raça, dos imigrantes, consegue, em confronto mais próximo com as autoridades, obter uma ou outra melhoria e algumas conquistas, pois há mazelas diárias, brutalidades sofridas na pele que somente quem as vivencia é que sabe. Mas, por vezes, mesmo conseguindo uma ou outra lei protetiva, há sempre a ameaça de um novo governo fazer retroceder as conquistas ao zero.

A Associação Juízes para a Democracia – AJD, fundada em 13 de maio de 1991, manifesta o seu apoio na defesa intransigente do Estado Democrático de Direito, dignidade da pessoa humana, para todos, na democratização interna do Judiciário (na organização e atuação jurisdicional) e no resgate do serviço público (como serviço ao público) inerente ao exercício do poder, que deve se pautar pela total transparência, permitindo sempre o controle do cidadão. E é na condição de juízes, cidadãos e cidadãs, que nos posicionamos num debate que deve incluir a ressignificação do papel do Poder Judiciário, sob muitos aspectos, seja na diversidade de seus integrantes (negros e negras, indígenas, quilombolas), seja dando um basta na chancela da má atividade policial, já que uma súmula do tribunal de justiça do RJ sacraliza os depoimentos dos policiais que efetuam as prisões.

A AJD apresenta sua solidariedade à família de Moïse e a todos que perderam um ente querido para a violência e se coloca como parceira nesse “pensar juntos” e no “agir juntos”, para que nos tornemos uma sociedade como a preconizada no preâmbulo da Constituição da República: um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias.

Por isso, convidamos à reflexão para que o problema seja encarado à luz da opressão do sistema, que é a causa de todas as opressões. Se não conectarmos todas essas pautas identitárias, fundamentais, na exigência da Distribuição de Renda e no Combate à Desigualdade Social, ou seja, na eliminação da sociedade de classes, que o capitalismo/neoliberalismo institucionalizou como normal, estaremos, infelizmente, velando os corpos dos nossos afetos, em Acari, no Jacarezinho, no Tropicália, em Belford Roxo e onde houver desigualdade econômica.

Cristiana Cordeiro, presidenta da AJD Nacional, e Raquel Braga, integrante da coordenação da AJD RJ.