Moção de apoio a Luiz Alberto de Vargas

Vargas

Foto: TRT4

A Associação Juízes para a Democracia, reunida em Assembleia Geral, na cidade de Olinda, aprova e divulga a seguinte MOÇÃO DE APOIO ao associado LUIZ ALBERTO DE VARGAS, em razão da decisão de abertura de Processo Administrativo Disciplinar pelo Conselho Nacional de Justiça (0000630-17.2022.2.00.0000) e o faz pelas seguintes razões:

1) A decisão que determinou a abertura do procedimento disciplinar fundamenta-se no Provimento 71/2018, destacando que a liberdade de expressão é um direito fundamental, mas “não pode ser utilizada pela magistratura para afastar a proibição constitucional do exercício de atividade político-partidária”. A decisão ainda se fundamentou nos Princípios de Bangalore, no Código Iberoamericano de Ética Judicial e no Código de Ética da Magistratura Nacional para afirmar que as publicações do associado contrariam os valores da imparcialidade, afirmando que o magistrado deve “demonstrar imparcialidade, evitando todo tipo de comportamento que possa refletir favoritismo, predisposição ou preconceito”.

2) A AJD entende que o associado Luiz Alberto de Vargas não deve ser submetido a procedimento disciplinar, pois não violou nenhum princípio ou valor abrigado nas referidas normas e regulamentos.

3) Inicialmente, é preciso destacar que aos juízes, como a todos os cidadãos, assiste o direito à liberdade de expressão. O direito fundamental à liberdade de expressão, como é sabido, tem fundamento no artigo 5º, incisos IV e IX e no artigo 220 da Constituição Federal. Tais disposições revestem-se da natureza de cláusulas pétreas, não comportam retrocessos ou interpretações que busquem amesquinhar seu âmbito normativo. A seu respeito, já se manifestou a Suprema Corte, ao reconhecer sua extensão na ADPF nº 130, insuscetível de qualquer restrição indevida ou censura prévia. Tal decisão, tomada em sede de controle concentrado de constitucionalidade, vincula a todos os órgãos da Administração Pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual ou municipal (art. 102, § 2º da CF), além de lançar eficácia horizontal nas relações entre particulares, igualmente.

4) Diante da natureza de direito fundamental, eventuais vedações ou restrições ao exercício da liberdade de expressão a pretexto de compatibilizar-se com o regime jurídico da magistratura (art. 95, parágrafo único da Constituição Federal) devem ser interpretadas restritivamente, em caráter excepcionalíssimo e apenas quando constituam empecilhos concretos a seu dever de decidir casos concretos com imparcialidade. É com esse espírito que devem ser interpretadas as disposições dos Princípios de Bangalore, do Código Iberoamericano de Ética Judicial, do Código de Ética da Magistratura Nacional e do Provimento 71/2018.

5) Esses parâmetros hermenêuticos, ditados pelo “status” constitucional e convencional da liberdade de expressão, não têm sido respeitados nos casos em que magistrados manifestam-se de forma abstrata e crítica quanto a questões de natureza política. Nesse sentido, é preciso reconhecer que os juízes e juízas não se encontram flutuando no vácuo, mas estão imersos em suas circunstâncias históricas e geográficas. Carregam sua bagagem de vida e suas experiências. Não se pode exigir que não tenham opiniões e que não as expressem, sob pena de impor aos juízes e juízas uma diminuição de sua própria cidadania.

6) Ademais, quando a Constituição veda juízes e juízas de “dedicar-se” a questões partidárias o faz com a intenção de impedir a filiação partidária ou o efetivo engajamento em campanhas. No entanto, a pura e simples manifestação de opinião ou crítica não pode ser equiparada à suposta dedicação à atividade partidária. Não se pode ignorar que muitas opiniões e críticas expressas por juízes e juízas podem coincidir com programas partidários ou com declarações de suas lideranças, sem isso represente engajamento em atividade partidária. Em outro giro, a distinção entre o que seja expressão de natureza meramente política e o que ostenta natureza político-partidária também deve ser aferida de forma a preservar ao máximo o direito fundamental do magistratura. Nesse sentido, não há nenhuma ameaça à imparcialidade quando um magistrado ou magistrada manifesta sua indignação em face de políticas que, evidentemente, caracterizam ofensas ao texto constitucional ou que sejam ilegais ou até mesmo criminosas.

7) O dever do magistrado, em primeiro lugar, se dá com o cumprimento da Constituição Federal e das leis do país. Não se pode exigir que um magistrado assista a implementação de políticas governamentais que consistem em verdadeiros desmontes dos direitos sociais, consagrados na Constituição, de forma inerte. Em tais situações, o direito se transforma em dever de se manifestar em defesa do cumprimento dos mandamentos constitucionais.

8) Não se pode, de igual forma, ignorar o contexto em que as manifestações do magistrado Luiz Alberto de Vargas ocorreram. Trata-se de quadra histórica em que as mais altas autoridades do Poder Executivo protagonizaram, de forma reiterada e sistemática, manifestações dos mais variados negacionismos, de desapreço à institucionalidade representada na figura de Ministros do Supremo Tribunal Federal e do Tribunal Superior Eleitoral, discursos de endosso a visões autoritárias de ruptura da ordem constitucional democrática, ameaças de não aceitação do resultado legítimo das eleições e incitações das mais variadas formas à prática de violência política contra adversários, transformados em verdadeiros “inimigos”, na mais fiel expressão dos fascismos que marcaram as primeiras décadas do século XX e que continuaram a inspirar regimes autocráticos em todo o mundo.

9) Nesse sentido, verifica-se que a política autoritária levada a efeito pelo Chefe do Poder Executivo empossado em 2018 se traduziu em sucessivas medidas governamentais que exigiram a firme atuação das autoridades judiciárias, no cumprimento de suas competências de controle dos atos administrativos contrários ao texto constitucional. Tratou-se de período em que o descumprimento sistemático da Constituição Federal materializou-se em verdadeira política de governo, obrigando o Poder Judiciário a atuar de forma frequente. Com essa estratégia, o Poder Judiciário, ele próprio, tornou-se alvo do ódio, da desinformação e da incitação à violência em vários perfis das redes sociais, muitos deles perfis oficiais da comunicação social do governo, financiados por dinheiro público.

10) Não é se de estranhar que, no momento em que a AJD se encontra reunida em seu Encontro Nacional, tenhamos assistido com tristeza e indignação aos recentes e violentos ataques aos Ministros do Supremo Tribunal Federal, sendo o ataque ao Ministro Luiz Roberto Barroso, na cidade de Porto Belo/SC, e aos Ministros Lewandovski, Alexandre Moraes e Barroso em evento na cidade de Nova Iorque, protagonizados por seguidores do Presidente Bolsonaro inconformados com os resultados das eleições, exemplos do extremismo e da intolerância política semeados ao longo dos últimos anos por lideranças descomprometidas com os valores democráticos.

11) Tudo isso demonstra que o Brasil atravessa grave momento histórico, em que não apenas uma parte da população, insuflada por conteúdos de desinformação disseminados massivamente nas redes sociais, bloqueiam estradas e pedem intervenções federal ou militar, de forma claramente antidemocrática, como as autoridades da República que deveriam desautorizar tais manifestações e clamar pela normalidade democrática traduzida na aceitação do resultado das eleições, omitem-se de forma proposital e voluntária.

12) A Corte Interamericana de Direitos Humanos, no emblemático caso Lopez Lone e outros v. Honduras, já se manifestou no sentido de que, em contextos de ruptura ou de grave ameaça de ruptura da ordem democrática, incumbe aos magistrados, como agentes de poder, não apenas o direito de se expressar livremente em defesa da democracia, mas autêntico dever de denunciar arbítrios e inconstitucionalidades.

13) Recentemente, o Tribunal Europeu de Direitos Humanos, ao decidir o caso Kozan v. Turquia, em que um magistrado foi punido por compartilhar em grupo privado de whatsapp conteúdos críticos à cúpula do Poder Judiciário da Turquia, deliberou que punições de magistrados por manifestações de conteúdo político acarretam efeito silenciador, cerceando os demais juízes e juízas de participar de relevantes debates que podem impactar, inclusive, na própria atividade judicante.

14) Por fim, a AJD não pode deixar de registrar que outros juízes e mesmo altas autoridades judiciárias têm manifestado com muita desenvoltura e ostensividade, posições de apoio às políticas governamentais inconstitucionais e mesmo aos atos antidemocráticos, sem que tenham sofrido qualquer tipo de investigação, sindicância ou punição, o que indica um viés seletivo na atividade punitiva do Conselho Nacional de Justiça, prática que não pode ser tolerada.

15) Por todas essas razões e por entender que o associado Vargas exerceu legitimamente não apenas seu direito à liberdade de expressão, mas não se furtou ao dever de se manifestar contrariamente às ameaças de ruptura da ordem democrática é que a Associação Juízes para a Democracia, reunida em Assembleia, aprova a presente MOÇÃO DE APOIO ao associado Luiz Alberto de Vargas, magistrado culto, competente, corajoso, destemido defensor da democracia e dos direitos sociais e que muito nos orgulha de integrar nosso quadro associativo.

Olinda, 14 de novembro de 2022.