Nota Contra o Marco Temporal

A Associação Juízas e Juízes para a Democracia – AJD –, entidade civil sem fins lucrativos ou interesses corporativistas, vem novamente externar sua firme contrariedade à tese do marco temporal que não tem nenhum fundamento histórico, antropológico, cultural e muito menos convencional e constitucional. O constituinte originário, ao definir abstratamente “terras tradicionalmente ocupadas” como aquelas que eles habitam permanentemente, utilizando-as para suas atividades produtivas e que são imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar, como também para sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições, não estabeleceu nenhum outro requisito além do vínculo anímico com o território. Não há nenhum amparo jurídico no estabelecimento de data para a caracterização das terras como tradicionais para fins de demarcação. Logo, os vínculos afetivo, espiritual, ancestral e cultural dos indígenas com as terras são critérios constitucionais para a caracterização das terras como de ocupação tradicional.

A jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos – CIDH - reconhece que o vínculo cultural é requisito suficiente para fundamentar a reivindicação de terras pelos indígenas, mesmo frente a títulos formais de propriedade em nome de terceiros, entendendo que esse direito permanece hígido ao longo do tempo enquanto perdurar a ligação cultural e espiritual dos povos originários com o território reclamado.

Nesse sentido, a tese do Marco Temporal confronta-se com os direitos indígenas reconhecidos no ordenamento jurídico brasileiro desde a Carta Régia de 1611 e que a Constituição da República de 1988 amplia no artigo 231 da Constituição da República. Confronta-se inclusive com jurisprudência do próprio STF que vinha caminhando em consonância com a jurisprudência da CIDH, reconhecendo o vínculo anímico dos indígenas com a terra como critério definidor de tradicionalidade, o que somente poderia ser rompido com a desocupação voluntária, não se convalidando título de propriedade obtido pela expulsão violenta e pelo genocídio dos povos indígenas.

Como se vê, o artigo 231 da Constituição Federal não constituiu direitos, apenas os declarou.  

Ressalte-se que a política indigenista adotada pelo Estado brasileiro até o final da Ditadura Civil-Militar iniciada em 1964 negava subjetividade e titularidade de direitos aos povos tradicionais, tratados como incapazes, removendo-os de suas terras tradicionalmente ocupadas e confinando-os em reservas.

Logo, não se pode exigir a contemporaneidade da posse com a promulgação da Constituição como requisito para a demarcação das áreas reivindicadas pelos povos indígenas, até porque a posse tradicional não é a posse civil, mas sim uma posse constitucional, não se conta pelo tempo e pelos atos de domínio, mas pela umbilical relação de simbiose entre a terra e os indígenas.

Ademais, o artigo 231 da Constituição afirma que os títulos de posse de terra incidentes sobre Territórios Indígenas são nulos, o que impediria, portanto, a aplicação de qualquer marco no tempo. A posse já existia quando a Constituição da República fundou o Estado que se limita a reconhecê-la.

Não se pode ignorar a impossibilidade de os indígenas resistirem às retiradas compulsórias promovidas pela política indigenista estatal anterior à abertura democrática, o que justifica o fato de não ocuparem o território na data de 5 de outubro de 1988.

Como se vê, a exigência do marco temporal é inválida juridicamente por afronta direta ao texto constitucional expresso.

A AJD reconhece a garantia da autodeclaração indígena das terras ocupadas ancestralmente. Tal interpretação constitucional é a única a assegurar direitos fundamentais como manutenção da vida, do modo de viver indígena e das futuras gerações. O reconhecimento da pluralidade e das diferentes visões de mundo dos povos indígenas em nossa constituição dentro de seu território autodeclarado mantém e materializa o direito desses mesmos povos de serem diferentes, de expressarem suas identidades culturais e de participarem de uma sociedade que valoriza a diversidade, a biodiversidade e a manutenção do meio ambiente sadio e sustentável.

As injustiças históricas sofridas pelos povos indígenas, como resultado da colonização e da perda de suas terras, territórios e recursos, não deve e não pode mais ser perpetuada. É um dever constitucional do atual congresso e governo, eleitos democraticamente, respeitar e promover os direitos dos povos indígenas, incluindo a demarcação das terras e preservação dos recursos naturais, sem os quais não haverá futuras gerações nem vida. Qualquer outra interpretação pode se converter num catalisador do genocídio que este país perpetra a sua população ancestral há pelo menos 500 anos, como no recente caso do povo Yanomami.

A inadmissível tese do marco temporal deixa de considerar que vivemos uma crise global climática com eventos cada vez mais extremos de seca e perda de terras agricultáveis e biodiversidade e que os indígenas são reconhecidos pela Organização das Nações Unidas – ONU -, e pelo mundo todo, como grandes guardiões da Terra. Nesse passo, impõe-se ressaltar que o Projeto de Lei 490/07, que trata da tese do marco temporal, viola os compromissos ambientais sobre as alterações climáticas e redução de emissão de gases do efeito estufa assumidos pelo Brasil no Pacto de Paris.

Portanto, a AJD -Associação Juízas e Juízes para a Democracia - conclama o Congresso Nacional a rejeitar o Projeto de Lei 490/07 e convoca o Governo e a sociedade a rechaçarem a tese do marco temporal, por absoluta incompatibilidade com a Constituição Federal, com pactos e convenções internacionais, com a jurisprudência da CIDH e principalmente com os direitos tradicionais dos povos indígenas que defendemos como princípio e valor democráticos.